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Luis Salvatore

Ler x poder: os desafios da mediação de leitura

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Luis Salvatore

Diretor-presidente e fundador do Instituto Brasil Solidário. Responsável e idealizador do Programa de Desenvolvimento da Educação, metodologia que promove aumentos em indicadores através de formação de educadores. Recebeu em 2019 o prêmio Personalidade do Ano na categoria Responsabilidade Social, em Nova York, e faz parte da Rede Folha de Empreendedores Socioambientais.

Um dos maiores desafios educacionais no Brasil é transformar a leitura em hábito. Sim, ler um único livro ao ano ainda é um desafio para a maioria dos brasileiros.

De acordo com a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil do Instituto Pró-Livro, o brasileiro lê em média apenas dois livros por ano, e 30% da população nunca comprou um livro sequer. Em contraponto, a promoção do hábito de ler cresce dentro das escolas públicas, ainda que a passos lentos —lembrando que menos da metade delas tem biblioteca. Acreditem, isso já é um grande avanço.

A primeira vez que o assunto me chamou atenção já tem 20 anos. Duas décadas atrás pude viajar por boa parte do país com a “Expedição Trilha Brasil”. Conheci realidades duras e extremas que me tocaram profundamente a ponto de ressignificar minha vida.

Mas, no quesito livros, o que me chamou atenção foram as propagandas da então campanha do governo da época: “vamos fazer do Brasil um país de leitores”. Os cartazes estavam, de fato, espalhados aos montes de norte a sul. Já os livros, bem, esses não eram tão facilmente encontrados.

De lá para cá muita coisa aconteceu em minha vida. Deixei no meu rastro, com o Instituto Brasil Solidário, mais de 1 milhão de livros (e possivelmente mais leitores que isso), junto com 277 bibliotecas escolares, comunitárias e municipais, montadas ou construídas.

Aprendi também que o “output” não é nada sem o “outcome”. E, infelizmente, que muitas vezes a sociedade ainda está de fato mais preocupada com números ao invés das boas histórias. Afinal, é mais fácil ver um gráfico rápido do que querer ler uma história, não?

Mas, como nos contos de fadas, isso pode ter um final feliz com muita persistência e, claro, boas histórias de transformação humana para contar.

Em tempos de pandemia, com aulas remotas, a urgência para nos “tornarmos” leitores se tornou ainda mais desafiadora. Se, por um lado, os pais têm tido dificuldade em acompanhar os filhos em aulas virtuais, o mesmo estudo do Pró-Livro, por outro lado, mostra a importante influência que pais e professores têm no processo de mediação da leitura.

A trilha aberta pela BNCC (Base Nacional Comum Curricular) possibilitou novos enfoques, ao trabalhar habilidades socioemocionais e ao redefinir o papel do professor, que passou a ser orientador/facilitador do aprendizado.

Novos conceitos, como o ensino a distância e o aprendizado ativo têm sido testados de forma a dinamizar o ensino. Praticadas há anos pelo Instituto Brasil Solidário, temos um vasto legado de formação na área de mediação de leitura, inclusive. Mas entendemos que, sem um hábito de leitura bem sedimentado em casa, tais iniciativas correm o risco de não avançar em todo o seu potencial.

De fato, ler um único livro ainda é desafiador. Estamos já com seis meses de pandemia, muitos ainda isolados em casa. E quantos livros você leu nesse período? Quantos livros a escola do seu filho pediu que fossem lidos nesse momento de aulas remotas, em que seria muito bem-vinda a atividade da leitura literária em casa na pandemia? Como “em casa de ferreiro o espeto é de pau”, se aqui foi e ainda está sendo um desafio, imagino no grande Brasil, “um país de leitores”.

Não se trata simplesmente de continuar a culpar os outros, de questionar os novos impostos, saber dos livros que não foram distribuídos. Pois, até antes de envolver as crianças no encantamento do ato de ler, é preciso que nós, pais e educadores, nos questionemos como leitores. Estamos lendo mais que dois livros ao ano? Se as crianças raramente (ou nunca) nos veem com um livro na mão, como poderemos convencê-las de que a leitura pode ser uma atividade mais prazerosa do que infindáveis apps e games?

Nos anos de atividades de formação e mediação de leitura que temos nas costas, um fato é crucial: o exemplo e a paixão pelo livro continua sendo o maior instrumento de poder e transformação nesse quesito. Nesse sentido, é preciso não apenas “ler junto”. É preciso antes de tudo, amar um livro. Saber contar a história, levar as diferentes formas de texto, a fim de tornar a leitura uma atividade mais lúdica e imaginativa.

Ah, claro, como todo amor, ele deve ser cultivado, semeado, para depois avançarmos aos detalhes para novas formas de leitura, críticas para o exercício da cidadania, estimulando debates sobre a obra.

Luis Salvatore, diretor-presidente e fundador do Instituto Brasil Solidário
Luis Salvatore, diretor-presidente e fundador do Instituto Brasil Solidário - Divulgação

Mas o sucesso também envolve o espaço. Dessa forma, para além do livro, é preciso também “ressignificar” a palavra biblioteca, cuja origem vem do grego bibliotheke, sendo biblíon (livro) e theke (coleção ou depósito). Ocorre que, no contexto das escolas públicas brasileiras, a biblioteca se tornou —e continua sendo— em sua maioria um depósito de livros, sem nenhuma organização e, portanto, sem qualquer poder de atrair novos leitores.

Hoje, é dever das escolas abandonar esse conceito e criar um ambiente mais convidativo, de maneira que a criança se sinta provocada pelas capas dos livros, pelos tapetes e almofadas coloridas dos cantinhos da leitura, junto a um calendário de atividades literárias.

Ao juntar a organização desses espaços com criatividade, artes, sustentabilidade, teremos nosso exemplo interdisciplinar acontecendo de verdade, com respostas não só em leitura, mas para o desenvolvimento cognitivo e ao lado das habilidades socioemocionais. Isso sem falar da BNCC e dos ODS sendo alcançados de forma conjunta na melhor simbiose envolvendo educadores, alunos e famílias.

Como no “final feliz” dos contos de fadas, nada disso é possível sem um conjunto de ações em equilíbrio. A mediação da leitura é um ato de comunicação com o outro e consigo mesmo. Precisamos incorporá-la ao nosso dia a dia e entendê-la como uma oportunidade de ensinar e, ao mesmo tempo, aprender. E tudo começa no prazer e na paixão.

Essa é a mensagem que o IBS levará na noite do dia 12 de setembro, quando recebe o Prêmio de Reconhecimento Internacional da Literatura Brasileira, promovido no Encontro Mundial de literatura Brasileira pela Fundação Focus Brasil e Academia Internacional de Literatura Brasileira de Nova Iorque, EUA.

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