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'Fico feliz de inspirar um projeto que ajudou muita gente', diz diarista sobre Mães da Favela

Projeto da Central Única das Favelas é uma das 30 iniciativas de destaque no Empreendedor Social do Ano em Resposta à Covid-19, na categoria Ajuda Humanitária

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Rio de Janeiro

O caso de Elaine Torres levou Celso Atayde, fundador da Cufa, a estrutuar programa de socorro emergencial que beneficiou 5 milhões de mulheres nas favelas na pandemia.

Moradora de Heliópolis, a diarista foi mandada embora de todas as casas que trabalhava no auge da pandemia. Desempregada, contou com cestas básicas e cartão alimentação para não passar fome na crise sanitária.

Foi internada com Covid-19 na ala da Sirio-Libanês, que presta atendimento ao SUS. "Maravilhosos, tratamento igual a de presidente", diz ela, que escreveu uma carta à primeira-dama Michelle Bolsonaro, pedindo ajuda para a filha vítima de uma síndrome rara. Uma das gêmeas já havia morrido. A seguir, a luta dessa mãe da favela.

A diarista Elaine Torres, beneficiária das ações da Cufa
A diarista Elaine Torres, beneficiária das ações da Cufa - Arquivo pessoal

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Minha mãe conheceu meu pai no Carnaval. Ela era passista da Unidos da Vila Maria, ele, ritmista. Ela acabou não querendo ficar com meu pai. Eu com quatro dias de nascida, e minha mãe voltou pra Itabuna (BA). A mãe vendia lá, num viaduto que tinha para trabalhadores, o que a gente chama de mingau, aqui costumam chamar de polenta mole.

Quando eu tinha nove meses, conheceu meu padrasto, e viemos embora pra São Paulo. Eu tinha bronquite, ficava doente, não me adaptei ao clima quente. Minha mãe arrumou emprego numa pizzaria, depois outro numa empresa. De dia um, à noite outro.

Foi uma infância bastante dificultosa, ela trabalhava muito. A gente morava na Vila Maria, um cômodo mais cozinha, o banheiro pro lado de fora. Eles falam cortiço. Era uma vilinha com bastante gente.

Minha mãe ficou com depressão e começou a beber muito, eu tinha uns nove anos. Pinga mesmo, essas bebidas fortes. Fui crescendo tendo que cuidar dos irmãos, trabalhar em casa, buscar ela no bar.

Com 19 anos, engravidei. Eu fazia biologia marinha na Uninove, estava no segundo ano. Acho que tem muita pouca pessoa pra cuidar dos bichinhos do mar. A água fornece tanta coisa pra gente, e as pessoas estão destruindo ela.

Com sete meses de grávida, minha vó mandou buscar minha mãe em São Paulo. Eu ia embora com eles, mas a empresa de ônibus não autorizou porque era viagem longa, eu podia parir no caminho.

Tive que ficar sozinha sem ninguém, só tinha uma tia. Um amigo disse que em Heliópolis tinha um barraco. Essa tia minha não deixou trazer meu filho, me disse para voltar e pegar o menino quando eu tivesse estabilidade.

Ele se acostumou e não veio mais comigo, tem 14 anos hoje. Não tenho coragem de tirar ele dela, seria muito ingratidão.

A faculdade eu não ia conseguir pagar, era meu padrinho e meu pai que pagavam antes. Eu não tinha mais renda. Graças a Deus encontrei em Heliópolis uma instituição pra fazer vários cursos gratuitos: professora de dança, mecânica de carro, padaria.

Consegui trabalhar e arrumei uma casa melhorzinha. Mas era um lugar bem complicado de morar, perto dos meninos do movimento. O horário que tinha pra descansar eles faziam vuco-vuco na porta de casa, e eu não podia falar nada, era a lei da favela.

Saí e fui morar na casa dos outros. Passei muita humilhação, só podia comer o que sobrava. Pra dormir, sempre era a última. Tinha que esperar todo mundo deitar pra botar colchão bem perto da entrada do banheiro.

Fiquei dois meses assim até juntar dinheiro. Aí conheci o pai dos meus meninos. Foi na véspera de Natal. Eu estava no bar de um amigo meu que fazia samba, conheci ele lá. Com cinco meses, me pediu em namoro.

Ficamos juntos até o final do ano passado. Depois de dois anos juntos, ele se entregou para as drogas. Em 2019, minha filha faleceu, e eu disse para ele: agora não quero mais. Ele se internou. Saiu da clínica três meses atrás, falei que se arrumar emprego a gente conversava. Está há oito meses sem usar droga. Tomara que esta reportagem o ajude.

Quando veio a pandemia, eu trabalhava em casa de família, cada dia da semana numa diferente. As patroas todas me mandaram embora.

Quando minha pequena Pérola faleceu, descobri que estava grávida de duas bebês. Elas tinham dois meses quando começou a pandemia. Sem a pérola, agora são seis filhos: Derick, Ashley, Kimberly, Wadnan, Hillary e a Anne.

Não gosto que eles tenham nome muito comum. Tem 30 Anas Claras na favela. Quando chamar os meus, são só os meus.

Montei um grupo para as mães de Pompe, que é uma síndrome que afeta a parte enzimática de corpo. Quando nasce, nasce com coração muito grande e hipotônica, ela não se movimenta. Tem que buscar tratamento na França, é caro, custa R$ 85 mil por mês para quatro doses da injeção.

Minha filha morreu com um ano. Era a única bebê no Brasil que tinha essa doença. Na época, Bolsonaro falou que não ia pagar por doenças caras [vetou um projeto de lei que previa recursos para tratar qualquer doença no SUS]. Chorei muito, fiz uma carta pra Michelle Bolsonaro pedindo pra ela ver o que podia fazer.

Ela mandou uma carta me dando forças, pra eu não perder a fé, que tudo era a vontade de Deus. Me confortou muito saber que ela ouviu minha história.

Eu e as gêmeas pegamos Covid em maio. Uma delas ficou internada 17 dias. Primeiro foi por causa do sarampo, aí viram que estava com Covid também. Fomos para o Sírio-Libanês, na parte do SUS.

Maravilhosos, tratamento igual a de presidente. Pediatra vinha de hora em hora. A Covid pegou muita gente, mas não tantas crianças, eles queriam investigar como era a evolução. Minha bebê ficou bem, mas eu fiquei com sequela de falta de ar.

O paladar ainda não voltou, só sinto quando é alho, pimentão, coisas com gosto bem marcante.

O presidente da Cufa (Central Única das Favelas) em Heliópolis estava fazendo um trailer de cesta básica. No dia, o Celso Athayde veio com ele. Ele ficou impressionado com o barraco onde moro. Eu que construí. A madeira peguei no lixo, prego fui pedindo pra me doarem, forrei de lençol as paredes.

Ontem minha casa alagou inteira. A gente tá tão acostumado que joga lona nos móveis quando chove. Três filhos dormem em cima na beliche, e embaixo dormem eu, as gêmeas e o Wadnan. Elas têm dez meses, meu mais velho, 14.

Contei toda a minha história para o Celso: que era mãe solteira, porque o pai das crianças ainda estava na rua. Ele disse que montaria um projeto inspirado em mim: o Mães da Favela. Achei que era brincadeira. Uma semana depois: "Meu Deus, ele falou e aconteceu".

No começo do ano, ganhei três parcelas de R$ 120, agora mais duas. E tem sempre cesta básica, hortaliça, produto de higiene, fralda, roupa, sapato. É um projeto que eu não queria, porque é um momento muito triste para muita gente. Mas fico feliz em saber que inspirei algo que ajudou outras pessoas.

Não voltei ainda a trabalhar, tô desempregada. Estamos aqui, trancados. Com a nova onda, tô morrendo de medo. Sou evangélica, eu ia na Assembleia de Deus. Por causa da pandemia, pastor falou para evitar de ir, porque igreja tem sempre bastante gente. Estamos fazendo cultos online.

A Bíblia em si já motiva a gente em tudo. Cada fase da vida tem um pedacinho que consola. Mas aquela de "o Senhor é meu pastor e nada vai me faltar" é a palavra certa. Sou muito temente às coisas de Deus. Nunca perdi minha fé.

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