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Moradia digna para quem?

O sofrimento de quem leva anos para construir e, em instantes, com a chegada da estação chuvosa, perde seu lar

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Ester Carro

Arquiteta e urbanista social, pesquisadora no Núcleo de Mulheres e Território do Laboratório de Cidades (Arq. Futuro e Insper) e CEO do Fazendinhando

As construções em comunidades, geralmente em alvenaria, são precárias, sem revestimentos, com quase total ausência de elementos arquitetônicos e instalações mínimas. Nos períodos de chuva frequente, como o que vivenciamos agora, os problemas pioram.

Há inundações e desabamentos, perda de mobiliários, infiltrações e mofo, por vezes destruindo sonhos que levaram anos para serem conquistados.

A mãe solo Maria Josilma, 38, moradora do Jardim Colombo (SP), me conta sua experiência neste começo de ano. "Com essa chuva, molhou muito aqui. Molhou cama, tive que afastar meu guarda-roupa. Vou ter que mudar de casa. Fiquei assustada porque as quatro paredes do quarto começaram a molhar, e olha que moro na casa de baixo. Como que uma casa debaixo da outra molha tanto assim?"

mulher de blusa branca posa em frente a sua casa, que fica numa viela
Maria Gorete Ribeiro, 53, mora há 40 anos no Jardim Colombo e, com apoio do projeto Fazendeiras pôde reformar sua casa e de vizinhos - Gabriela Caseff

As edificações são construídas em regime de autoconstrução, sem assistência técnica especializada, acarretando problemas de execução e, não raro, apresentam desdobramentos indesejados como trincas, umidade e goteiras.

Doenças respiratórias, dores de cabeça, aspergilose, doença pulmonar crônica, micose e alergias são algumas das consequências que incidem diretamente nos altos números de atendimentos nos postos de saúde e de reinternações nos hospitais da região.

"Na minha casa não consigo ver a luz do sol e por fora da janela escorre água", diz Elisangela Mendonça, 42, também mãe solo.

"A janela é aberta, só tem uma redinha, e com a chuva começou a gotejar no móvel onde fica a televisão. Tive que jogar o móvel fora e escorar a janela com uma madeira para não entrar água. Mesmo assim, a madeira fica úmida e com um cheiro insuportável. Uma parte da minha parede tem muito mofo por causa da chuva. Pago aluguel e não tenho condições de morar em outro lugar", relata.

Essas histórias me fazem lembrar de um rap que cresci escutando: "Milhões de brasileiros não tem teto, não tem chão / Eu sou apenas mais um na multidão / Alá, tô vendo a cena vai chover e o rio vai transbordar / E meu castelo de madeira vai alagar / Isento de imposto eu mesmo abraço com meus prejuízos / Natural sofrer se os cordões são indecisos" (A Família, "Castelo de Madeira").

O entorno imediato do Jardim Colombo é constituído por residências de alto e médio padrão, que fazem jus à identificação do Morumbi como bairro da alta renda. Parte dessas edificações é bastante verticalizada e parte são edificações unifamiliares, em um e outro caso implantados em grandes lotes arborizados, com infraestrutura adequada.

Alguns de seus prédios e casarões estão bem próximos da comunidade do Jardim Colombo, separados às vezes apenas por uma calçada e, naturalmente, por altos muros e segurança particular.

A cidade de São Paulo foi planejada por meio de uma urbanização desenfreada. A rápida impermeabilização do solo, para dar lugar, principalmente, a ruas e avenidas, retirou a possibilidade de utilizar o rio como potencial da cidade para transporte de cargas e passageiros.

Diminuiu-se de forma acelerada a quantidade de áreas permeáveis, sem a elaboração de técnicas e dispositivos que minimizassem os fatores causadores de enchentes e os danos delas decorrentes.

Nesse sentido, é necessária a criação de projetos pautados nas escalas da edificação com auxílio técnico, pequenas intervenções e, posteriormente a consolidação por meio da regularização fundiária, entendendo que a maioria dos proprietários não possui posse dos terrenos.

É preciso encontrar respostas dentro das próprias cidades, em parceria com o poder público e iniciativa privada, preservando ou mesmo renovando constantemente o que ainda resta de qualidade urbana.

Criada no ano de 2008, a Lei Federal 11.888 assegura o serviço gratuito de arquitetura, urbanismo e engenharia para habitação de interesse social, conhecida como a Lei de Assistência Técnica para Habitação de Interesse Social (ATHIS). No entanto, são poucas as experiências consolidadas em territórios vulneráveis.

Como garantir moradia digna em assentamentos precários, pensando na escala do ambiente, unidade habitacional e comunidade?

Há ausência de políticas públicas efetivas concebidas no âmbito do morar. Quando surgem alternativas e projetos para moradias em periferias, existe a necessidade de recursos financeiros e acompanhamento técnico com alto grau de responsabilidade, dado que a estrutura (lajes, pilares e vigas) em grande parte das construções encontra-se afetada.

Estes foram alguns dos questionamentos apontados pela equipe no Instituto Fazendinhando ao longo de sua atuação no Jardim Colombo. Buscamos novas soluções a partir da criação e desenvolvimento de dois projetos: o Fazendolar e o Fazendeiras.

A maioria das casas em periferias mal dispõe de dois quartos. Os banheiros são precários, não há ventilação, as paredes têm umidade e mofo, há um número grande de pessoas vivendo no mesmo espaço, mobiliários mal planejados, sem organização adequada, entre tantos outros problemas.

O projeto Fazendolar dá visibilidade aos "interiores invisíveis" ao relatar a história por trás de cada casa e fazer reformas a partir de doações recebidas pelo instituto. Neste ano o projeto avançará com a aplicação de técnicas sustentáveis –a princípio com a inserção de hortas hidropônicas, melhorando a alimentação neste período tão crítico– e cisternas para captação de água da chuva.

O Fazendeiras qualifica mulheres na área da construção civil para que elas possam reformar suas moradias, se recolocar no mercado de trabalho e se empoderar para realizar ações da comunidade.

Neste ano o projeto seguirá com capacitações na área de azulejista, pintura e eletricista e, levando em consideração as necessidades atuais, um novo curso na área de impermeabilização.

Traduzir, representar e compor conjuntamente as percepções, necessidades, sonhos e anseios da comunidade sobre o ambiente físico é um importante passo no sentido de se construírem competências coletivas para a melhoria das condições de vida. Mais ainda, introduzir o senso de pertencimento ao lugar.

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