Pacientes com câncer correm mais risco de depressão e suicídio, diz pesquisa

Tratamentos que envolvem quimioterapia estão ligados a altos índices de transtornos psiquiátricos

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Jessica Wapner
The New York Times

Anos atrás, quando estava se especializando em neurologia, a Dra. Corinna Seliger-Behme conheceu um paciente com câncer de bexiga em fase terminal. Antes do diagnóstico, ele tinha situação familiar e empregatícia estável e nenhum histórico de problemas de saúde mental, recordou a médica. Mas, pouco depois de tomar conhecimento da doença terminal, tentou se matar com uma faca na banheira. Passou sua última semana de vida na ala psiquiátrica.

A situação desse paciente era extrema, mas para muitos o sofrimento psicológico provocado pelo câncer é grande. Dois estudos publicados nesta segunda-feira (28) quantificam detalhadamente o fardo psicológico do câncer usando conjuntos de dados muito maiores que pesquisas anteriores. As conclusões oferecem argumentos convincentes para que oncologistas conversem a fundo com seus pacientes sobre dificuldades de saúde mental.

"Provavelmente poderemos prevenir o suicídio se falarmos desse assunto e se começarmos a fazê-lo desde cedo", disse Seliger-Behme, neurologista da Universidade de Heidelberg, na Alemanha.

Homem sentado no chão abrançando os joelhos e escondendo o rosto entre oe joelhos
Caso o tratamento envolva quimioterapia, radioterapia ou cirurgia, aumenta o risco de desenvolver problemas de saúde mental - Pexels

Em um dos estudos, ela e vários colegas revisitaram 28 estudos abrangendo ao todo mais de 22 milhões de pacientes com câncer em todo o mundo. A análise que realizaram mostrou que a taxa de suicídio entre pessoas com câncer é 85% mais alta que na população geral. Previsivelmente, os cânceres com os melhores prognósticos –incluindo os de próstata, testuculares e melanoma não metastático— têm as menores taxas de suicídio. Os índices de suicídio mais altos correspondem aos pacientes com cânceres de prognósticos piores, como os de estômago e pâncreas.

O estudo constatou que as taxas de suicídio entre pessoas com câncer são nitidamente mais altas nos Estados Unidos que na Europa, Ásia ou Austrália. Os autores especularam que o alto custo da assistência médica nos EUA pode ter levado alguns pacientes a renunciar ao tratamento para evitar levar suas famílias à falência. Eles também aventaram que o acesso mais fácil a armas de fogo nos EUA, comparado a países em outras regiões do mundo, pode contribuir para os índices de suicídio mais altos.

No segundo novo estudo, Alvina Lai, estudante de informática na University College London, e um colega criaram um grande banco de dados compilado a partir das fichas médicas de 460 mil pessoas com 26 tipos distintos de câncer diagnosticados no Reino Unido entre 1998 e 2020.

Cinco por cento dos pacientes receberam diagnóstico de depressão após o diagnóstico de câncer, e 5% tiveram diagnóstico de ansiedade. Mais ou menos 1% dos pacientes desse grupo se automutilaram depois dos diagnósticos. Pacientes com tumores cerebrais, câncer de próstata, linfoma de Hodgkins, câncer testicular e melanoma se mostraram mais propensos à automutilação.

​​​Um quarto dos pacientes com câncer apresentaram transtorno de abuso de substâncias, segundo o estudo. E os problemas psiquiátricos, incluindo o abuso de substâncias, tenderam a se agravar ao longo do tempo, mesmo anos após o diagnóstico de câncer.

A análise mostrou que o maior fator isolado de risco de desenvolvimento de um problema de saúde mental era tratamento envolvendo cirurgia, radioterapia e quimioterapia. A duração, a intensidade e os efeitos colaterais cumulativos dessa abordagem tríplice pode explicar por que ele desencadeia depressão, ansiedade e até mesmo transtornos de personalidade em muitas pessoas.

A quimioterapia por si só também está ligada a altos índices de transtornos psiquiátricos, cujos índices mais baixos acompanham os chamados inibidores de cinase –drogas direcionadas que frequentemente provocam menos efeitos colaterais.

Os dados inequívocos levaram Lai a questionar se são dadas oportunidades suficientes aos pacientes para pesar os riscos psicológicos dos tratamentos possíveis. "Seria útil para pacientes com câncer recém-diagnosticado ver o que os dados nos dizem e tomar uma decisão informada", disse Lai.

O estudo também apontou fatos surpreendentes. Por exemplo, o câncer testicular traz um risco de depressão maior que qualquer outro tipo de câncer, afetando 98 em cada 100 pacientes.

"É um pouco contraintuivo, já que esse é um dos cânceres de prognóstico melhor", comentou o Dr. Alan Valentine, diretor do departamento de psiquiatria do MD Anderson Cancer ​Center, em Houston, não envolvido no estudo. Para ele, a descoberta ressalta como um diagnóstico de câncer pode ser tumultuoso, mesmo quando o tumor não é mortal.

Como os estudos que avaliam saúde mental geralmente utilizam questionários baseados em autorrelatos, é provável que os dados sejam subrepresentativos da realidade, destacou a psicóloga clínica Wendy Balliet, do Hollings Cancer Center da Universidade Médica da Carolina do Sul em Charleston. O estigma persistente que acompanha transtornos psiquiátricos leva muitas pessoas a esconder suas dificuldades interiores, ela explicou. Balliet destacou também que a complexidade envolvida em declarar uma morte como suicídio também pode levar à subnotificação da ligação entre câncer e suicídio.

Os resultados levantam questões sobre o aconselhamento e apoio psicológico adicional que poderiam ser oferecidos a pacientes com câncer. "É difícil para mim não pensar nas conversas que esses pacientes têm com seus oncologistas", disse Balliet.

Os estudos também chamam atenção para pacientes de câncer com transtornos psiquiátricos previamente diagnosticados, como esquizofrenia. Estudos anteriores mostraram que mais desses pacientes morrem de câncer que os pacientes que não têm essas condições. O estudo de Lai descobriu que pacientes de câncer que têm esquizofrenia são mais propensos a receber cuidados paliativos, potencialmente indicando que não receberam o tratamento que teria sido necessário logo após o diagnóstico de câncer.

"O câncer é uma doença cara", disse Valentine, do M.D. Anderson, "e é possível que pessoas com transtornos mentais graves ou não tenham acesso a atendimento ou tenham um sistema de saúde que não oferece os recursos que elas necessitam."

Nathalie Moise, professora de medicina na Escola Vagellos de Médicos e Cirurgiões da Universidade Columbia, observou que as diretrizes de tratamento atuais sugerem que parte do tratamento rotineiro de câncer seja um acompanhamento para verificar a presença de depressão. "Acho que estes estudos apontam para a necessidade de também verificar a presença de risco de suicídio e outros", ela disse.

"Normalizar o tratamento de saúde mental como parte integral do tratamento total contra câncer também ajudaria muito", ela disse.

Tradução de Clara Allain

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