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Negligenciado, estresse pós-traumático pode ser causado após estupro e gravidez

É comum que o transtorno passe despercebido e pacientes demorem anos para receberem o diagnóstico

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Dani Blum
The New York Times

Nancy Méndez-Booth foi diagnosticada com TEPT (transtorno do estresse pós-traumático) depois de dar à luz um bebê natimorto no inverno de 2008. Uma hora depois que ela correu para o hospital, em trabalho de parto e exultante, um médico lhe disse que o bebê que havia passado anos planejando não tinha batimento cardíaco.

Quando voltou para casa, Méndez-Booth disse que se sentiu como se tivesse "chegado de Marte"; ela se perdeu em seu próprio prédio. Oscilava entre dormência, paranoia vívida –temia que a polícia a prendesse pela morte do filho– e explosões de raiva. Seus armários de cozinha ficaram soltos porque ela batia as portas sem parar, procurando uma maneira de liberar parte da sua raiva.

"Eu só pensava comigo mesma: quem em sã consciência experimenta quatro estados mentais diferentes e incrivelmente intensos no espaço de 15 minutos?", disse Méndez-Booth, uma escritora e educadora que vive em Nova Jersey, nos Estados Unidos. Ela não conseguia diferenciar entre passado e presente. Continuava voltando mentalmente para a mesa de parto. Ela pensou que estivesse tendo um surto psicótico, mas mais tarde descobriu que estava passando pelo transtorno de estresse pós-traumático, ou TEPT.

Mulher foi estuprada pelo próprio namorado - 3.jun.2016 - Ricardo Borges/Folhapress

​Méndez-Booth se considera com sorte por ter recebido um diagnóstico. Segundo especialistas, é muito comum que esse distúrbio passe despercebido. Equívocos generalizados sobre quem desenvolve TEPT e confusão sobre seu complexo conjunto de sintomas podem impedir que as pessoas com o transtorno procurem tratamento, ou mesmo percebam que o têm.

"Estamos falando de milhões" de pessoas que sofrem de TEPT sem receberem o diagnóstico, disse Bessel van der Kolk, autor do livro seminal sobre o assunto "O Corpo Guarda as Marcas" e um dos principais especialistas na área de tratamento de trauma.

O TEPT entrou no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais dos EUA em 1980 como um diagnóstico oficial em resposta aos sintomas exibidos pelos veteranos da Guerra do Vietnã e, hoje, as pessoas em combate ainda relatam altas taxas do transtorno. De acordo com o Departamento de Assuntos de Veteranos dos EUA, entre 11% e 20% dos militares que serviram nas operações Liberdade para o Iraque e Liberdade Duradoura têm TEPT em um determinado ano. À medida que a Rússia continua a guerra contra a Ucrânia e mais cidadãos entram em combate, pesquisadores esperam o surgimento de casos de TEPT nos próximos anos.

Mas os civis também são afetados pelo estresse pós-traumático. O trauma com a maior probabilidade de causar o transtorno é o estupro, com o trauma de combate como um "segundo próximo", disse a dra. Shaili Jain, especialista em TEPT na Universidade de Stanford e autora de "The Unspeakable Mind" [A mente indizível]. É por isso que ela, juntamente com o dr. Van der Kolk e outros especialistas, dizem que é vital que mais pessoas entendam o que realmente é o TEPT.

Por que o TEPT pode não ser tratado

Paula Schnurr, diretora-executiva do Centro Nacional para TEPT dos EUA, disse que cerca de 70% dos adultos no país vivenciam pelo menos um evento traumático, o que os CDC (Centros de Controle e Prevenção de Doenças, em português) definem como uma experiência "marcada por uma sensação de horror, desamparo, lesão grave, e ameaça de lesão grave ou morte". Mas apenas 6% da população desenvolverão TEPT em algum momento de suas vidas, de acordo com o Departamento de Assuntos de Veteranos, a maior parte dos quais são mulheres.

Os cientistas ainda estão tentando identificar os fatores biológicos e sociais por trás dessas discrepâncias – como funciona o trauma geracional, a ideia de que alguns elementos do TEPT podem ser transmitidos geneticamente e o que o trauma "complexo", causado por eventos traumáticos repetidos, faz com a psique, por exemplo.

"Quando criamos este diagnóstico de TEPT, dissemos que veio de um acontecimento extraordinário fora do alcance da experiência humana", disse o dr. Van der Kolk, referindo-se aos cientistas e pesquisadores que tratam o distúrbio. "Estávamos completamente fora de sintonia por pensar que esse trauma é excepcional."

Vanessa Haye, 34, de East Midlands, na Inglaterra, desenvolveu TEPT na sequência de uma gravidez ectópica em 2019. Ela correu para o hospital para uma cirurgia com nove semanas de gravidez, e um médico lhe disse que ela poderia não sobreviver. Três semanas depois de uma recuperação dolorosa, ela teve que decidir o que fazer com os restos da gestação: cremação ou enterro. Depois, começou a experimentar memórias debilitantes. Haye acordava pouco antes das 3h todas as noites, agitada por pesadelos, imaginando como seria o bebê.

Pensamentos invasivos sequestravam seu cérebro: ela saía para passear com seu filho e imaginava um carro batendo nos dois. Quando seu marido não atendia o telefone, achava que ele havia morrido. Tudo parecia um risco. O estresse era tão intenso que sua menstruação parou. Depois de seis meses, Haye procurou um médico, que lhe disse que o TEPT é comum após a gravidez ectópica. Ainda assim, ela se sentiu desconectada do diagnóstico, chocada que isso pudesse se aplicar a ela. Levou meses para começar a ver regularmente um terapeuta e encontrar uma maneira para lidar com seus sintomas.

Reconhecendo os sintomas

Estudos mostram que a intervenção precoce é fundamental para gerenciar e potencialmente prevenir o TEPT. Mas pode levar até dois anos ou mais para as pessoas que apresentam sintomas receberem um diagnóstico, disse a dra. Jain. Aqueles que não passam por tratamento nos primeiros dois anos têm chances muito menores de recuperação.

"Ao saber que eu tinha TEPT, parecia que eu não o merecia, porque não fui para a guerra", disse Natalia Chung, 30, que foi diagnosticada com o transtorno em 2016 depois de terminar um relacionamento abusivo.

Muitas pessoas como Chung começam a terapia para o TEPT apenas depois de anos lutando com o transtorno, esforçando-se para lidar com sintomas que, com tratamento mais cedo, poderiam não ter se desenvolvido.

Parte do motivo pelo qual as pessoas demoram para se tratar é que "evitar é a marca registrada do TEPT", disse Vaile Wright, diretora sênior de inovação em saúde da Associação Americana de Psicologia. O distúrbio faz que as pessoas ignorem memórias de traumas –elas tornam suas vidas cada vez menores para bloquear qualquer evidência do que aconteceu.

Para Michelle DiMuria, 39, os respingos de chuva na janela podem desencadear um episódio. Estava chovendo no dia em que ela foi estuprada em 2015, e o clima puxa seu cérebro de volta ao ataque. Ela não consegue parar de imaginar o rosto de seu agressor. Desde que DiMuria foi diagnosticada com TEPT no outono de 2017, ela tem lutado para evitar os fatos da vida cotidiana que a fazem relembrar: o perfume, certas músicas de que seu agressor gostava. Sua coluna se quebrou durante o ataque, e ela tenta evitar olhar no espelho as cicatrizes da cirurgia espalhadas por sua pele.

DiMuria, que fundou uma organização de defesa da saúde mental chamada Fundação Bee Daring, usa uma pulseira trançada quando está em público. Ela disse a amigos que, se começar a mexer com o tecido, provavelmente está se dissociando. Ela montou mecanismos de enfrentamento para os dias ruins –M&M's de amendoim, filmes da Marvel, um aplicativo de colorir. Ela assiste futebol e grita para a tela, tentando encontrar uma saída para os surtos de agressividade que às vezes vêm com o TEPT.

A flutuação emocional é típica em pessoas com o transtorno, disse a dra. Wright. "Elas sentem que estão ficando loucas", disse. "Não costumam identificar isso como TEPT até que, idealmente, um terapeuta bem treinado diga que é realmente uma reação normal a um evento anormal."

No entanto, poucos terapeutas têm esse treinamento, disse Yuval Neria, diretor do Programa de Pesquisa e Tratamento de TEPT do Instituto Psiquiátrico do Estado de Nova York. E o distúrbio é especialmente difícil de tratar porque muitas vezes está ligado a outros problemas de saúde mental: dependência de drogas, depressão, ansiedade. A menos que os médicos sejam especificamente treinados para perguntar sobre traumas, podem ter dificuldade para identificar o TEPT como a raiz do problema de um paciente.

"Precisamos identificar as pessoas mais rapidamente, levá-las ao tratamento mais rápido, antes que se torne esse problema horrível", disse a dra. Jain. "Porque a realidade é que esta é uma condição administrável e tratável."

Apesar de os especialistas ainda não saberem tudo sobre o transtorno, a linguagem do TEPT se tornou um dos pilares da conversa moderna. "Gatilho" é um chavão e um meme; "trauma" é tendência nas redes sociais.

"O Corpo Guarda as Marcas" esteve na lista dos mais vendidos em brochura por quase 180 semanas seguidas e ganhou seguidores fervorosos. ("Estou muito inseguro sobre o impacto que está tendo", disse o dr. Van der Kolk quando perguntado sobre a popularidade do livro, dizendo que não viu ações concretas tomadas por causa de seu trabalho –nenhuma nova audiência no Congresso focada em TEPT e nenhuma mudança em geral nos currículos das faculdades de medicina.)

Alguns especialistas dizem que essa difusão diluiu o significado do TEPT. O distúrbio decorre de trauma grave, disse John Tully, professor clínico associado em psiquiatria forense na Universidade de Nottingham, na Inglaterra. "Estamos falando de risco de morte ou quase", disse ele. O termo perde seu significado quando as pessoas o aplicam de forma muito ampla, explicou –e TEPT significa mais do que lutar com as consequências de um fato perturbador.

"Quando chegamos ao ponto de falar sobre estresse no escritório causar TEPT, as pessoas escreverem coisas desagradáveis sobre você no Twitter causarem TEPT, é quando os médicos ficam céticos", disse ele.

Procurando ajuda

O TEPT nem sempre tem uma trajetória linear, e não há uma marca clara de recuperação. Para Haye, trabalhar em estreita colaboração com um terapeuta a ajudou a reconhecer e responder a seus sintomas. Ela está encontrando o caminho para conseguir dormir a noite toda.

A terapia tradicional de conversa não é a única opção de tratamento, porém. A exposição prolongada –intervenção cognitiva que envolve pacientes descreverem um evento traumático em detalhes precisos– demonstrou aliviar os sintomas de TEPT em nove a 12 sessões. E tratamentos experimentais emergentes, de terapia de realidade virtual a doses controladas de MDMA, mostraram resultados positivos.

As ferramentas digitais também podem ser úteis no manejo do distúrbio, disse a dra. Jain. Um aplicativo chamado Treinador de TEPT (PTSD Coach, em inglês), do Departamento de Assuntos de Veteranos, por exemplo, fornece informações sobre o distúrbio, assim como exercícios de aterramento para ajudar as pessoas a lidar com os sintomas.

Terapia de processamento cognitivo, medicamentos e uma técnica terapêutica chamada dessensibilização e reprocessamento do movimento dos olhos (EMDR na sigla em inglês), também são altamente eficazes no tratamento do transtorno, disse o dr. Schnurr. As sessões de EMDR ajudaram Méndez-Booth a lidar com os ataques de pânico. Ela ainda experimenta paranoia, mas seus episódios se tornaram menos frequentes com o passar dos anos. Ela vive uma vida mais completa e funcional agora do que pensava ser possível quando apresentou os primeiros sintomas.

"Eu sei que ainda está lá", disse ela. "Faz parte do meu tecido. Mas não é tudo em mim."

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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