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Pessoas negras precisam de terapeutas negros? Não, mas é indicado

Especialistas recomendam que pacientes busquem profissionais com os quais se identifiquem

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São Paulo

Em 2020, depois de os protestos pela morte de George Floyd se espalharem pelo mundo e chegarem ao Brasil, muitas pessoas brancas ao meu redor decidiram falar sobre racismo ao mesmo tempo – e eu não estava pronta para aquilo. Eu tinha que lidar constantemente com esse assunto não só em conversas pessoais, mas no trabalho como jornalista.

Quando eu senti que as coisas estavam pesadas demais, procurei ajuda psicológica. Marquei consulta com o primeiro profissional que encontrei, uma mulher branca. Depois de me apresentar e contar o que tinha me levado até ali, ela disse que, apesar de não ser negra, tinha certeza que poderia me ajudar. O motivo? Ela era uma grande fã de Kizomba.

Eu não fazia ideia sobre o que ela estava falando. Aproveitei que a sessão era online e troquei de aba no navegador para pesquisar. Kizomba é um gênero musical e um estilo de dança originário de Angola. Foi nossa primeira e única sessão. Nunca mais nos falamos. Depois disso, decidi procurar uma terapeuta negra – um movimento inédito para mim, mas comum no Brasil.

Ilustração de Pogo mostra duas mulheres. Uma delas está deitada em um divã rosa. A outra aparece sentada numa cadeira lilás, logo atrás da primeira. Ambas são negras. A da cadeira veste vestido azul, colares e pulseiras dourados e tem plantas cobrindo o rosto. A que está deitada usa vestido amarelo e sapatos de salto alto vermelhos. Ela também tem parte do rosco coberto por plantas e flores.
Especialistas indicam que negros se consultem com terapeutas como os quais se identifiquem - Pogo

Cada vez mais negros procuram terapeutas com os quais se identifiquem. O movimento é recomendado por profissionais da área, embora fazer o tratamento com pessoas de outras raças não seja um problema – desde que consigam lidar com as questões raciais levadas ao divã.

Clélia Prestes, doutora em psicologia social pela USP (Universidade de São Paulo) e membro da ONG AMMA Psique e Negritude desde 2010, conta que desde a fundação da organização, em 1995, pacientes procuram o local em busca de psicólogos negros.

"Muitas vezes as pessoas chegam na minha clínica dizendo que faziam terapia com um profissional branco que até reconhecia a existência do racismo, só que não estudava. E aí a pessoa pensava 'Bom, eu vou pagar pra dar aula sobre racismo?'", diz.

Profissionais negros observam que a falta de conhecimento sobre a população negra e questões raciais passa pela formação dos psicólogos brasileiros, norteada por referências européias e majoritariamente brancas.

É só pensar nos nomes que nos vem à cabeça quando falamos deste campo de estudo, como Freud e Lacan. Apesar das grandes contribuições para a psicologia e psicanálise, esses autores não tratam o racismo como uma questão central do sofrimento psíquico – o que pode ser especialmente danoso num país como o Brasil.

"Numa sociedade em que existe uma violência estrutural e alguém se omite de tratar disso, estando vinculado a uma profissão comprometida com a promoção da saúde, isso não é ser neutro, é ser conivente", diz Prestes.

O psicólogo Tiago Cabral concorda com o argumento de que há uma deficiência na formação acadêmica destes profissionais.

"Vamos supor que a gente tenha uma doença que seja específica do Brasil, que todo mundo tenha um osso a mais, por exemplo. E aí, na faculdade de medicina, os alunos não estudam isso. É mais ou menos isso que acontece na faculdade de psicologia. A gente tem um fenômeno que é particular do Brasil e ignoram."

Na prática, quando questões de identidade – como raça, gênero e orientação sexual – não são levadas em conta, o psicólogo pode acabar aumentando o sofrimento de quem o procurou em busca de ajuda.

Quando decidiu fazer terapia, Hera Marques, 22, encontrou um coletivo de profissionais que atendem membros da comunidade LGBTQIA+. "Eu sou uma mulher negra e bisexual, então racismo e a homofobia interferem muito na minha vida. Era importante encontrar uma pessoa que me entendesse e não achasse que o que eu estava dizendo era mimimi."

Desde outubro de 2020, Marques faz sessões semanais de terapia com uma psicóloga que encontrou por meio do coletivo. "Ela é uma mulher negra retinta. Na época em que eu a conheci, ela tinha o cabelo bem curto e pintado de roxo. Eu sou negra e tenho o cabelo colorido, então eu consegui me ver naquela pessoa e confiar nela."

Para quem sempre se viu refletido na imagem de profissionais de saúde, essa sensação pode parecer banal. Para Marques e outras tantas pessoas negras, não é. "A raça impacta diretamente na confiança que eu construí com a minha psicóloga, não tem como negar." Ela conta que a terapia a ajudou a compreender como suas questões com a autoestima, por exemplo, são influenciadas pelo racismo.

Clélia Prestes defende, no entanto, que o preconceito racial não é uma questão que deve ser discutida só por pessoas negras.

"Numa sociedade adoecida pelo racismo, ninguém vai estar saudável. Então, quando uma pessoa branca se acha superior apenas por conta da sua cor, isso é tão problemático quanto alguém que se acha inferior apenas por conta disso".

Em um dos primeiros trabalhos da psicóloga e pesquisadora do racismo Lia Vainer Schucman, a paciente era uma mulher branca que havia sido traída pelo marido. "Ela estava se sentindo rebaixada por ter sido trocada por uma pessoa que ela nomeava como 'empregadita'." Como não entendeu o motivo do apelido, Schuman perguntou. "Era porque a amante era uma mulher negra."

O sentimento de superioridade ligado a pessoas brancas é o outro lado da moeda do racismo. Para Schucman, reconhecer a importância desse e de outros fenômenos ligados às relações raciais é fundamental para o bom exercício da profissão.

"O que eu acho mais importante? Que psicólogo tenha escuta para a questão racial. As pessoas falam de raça por metáforas. Então, é preciso entender quais são os efeitos do racismo para poder captar isso."

Críticos dessa busca por profissionais negros apontam que psicólogos devem atuar de forma neutra, sem deixar que sua identidade interfira no atendimento. Prestes, no entanto, não acredita nessa ideia.

"Não existe neutralidade, existe imparcialidade, e para ser impacial você precisa considerar qual é o lugar que você ocupa. Nós não precisamos de uma psicologia de negros para negros, mas sim de uma psicologia que inclua a questão racial nas suas teorias e práticas."

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