Descrição de chapéu Família dia dos pais

Homens negros criam filhos desconstruindo a ideia de paternidade ausente

Eles querem acabar com o estereótipo de que não são responsáveis, amorosos, companheiros e incapazes de cuidar

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Salvador

Tadeu França, 34, Leandro Pereira, 31, e Humberto Baltar, 41, fazem parte de uma rede que tem buscado melhorar a si mesmo enquanto homem, ao mesmo tempo em que tenta desconstruir o estereótipo de que pais negros são ausentes.

Embora deixar de lado a chamada masculinidade tóxica também parta de uma iniciativa própria, a auto-observação de comportamentos ultrapassados surge em resposta às demandas das mulheres, que têm exigido um novo modelo de homem.

"Definitivamente, o posicionamento das mulheres, potencializado pelo uso das redes sociais, começa a mexer nas estruturas da pirâmide social", observa o gerente comercial formado como ator Tadeu França, morador de Guarulhos, na Grande São Paulo.

Tadeu Vieira de França com seus filhos Hugo e Augusto - Danilo Verpa/Folhapress

Eles querem combater preconceitos que permeiam o imaginário coletivo, de que homens negros não são responsáveis, amorosos, companheiros, além de machistas, incapazes de cuidar e até violentos.

Mais do que trocar sobre estratégias de sobrevivência, de se tornarem referências positivas para os filhos, esses pais recorrem à literatura, aos podcasts e às redes sociais, em um intercâmbio sobre os próprios sentimentos para criar as crianças de maneira mais afetuosa.

Com mais 44 mil seguidores no Instagram, França usa o humor para abordar temas ligados ao universo masculino. "Às vezes, recebo um hate [reclamação] de alguém que fala: 'ou, você tá acabando com meu casamento'. E respondo que não sou eu, mas as atitudes dele", conta o pai de Hugo, 1, e Augusto, 3.

Além de tentarem ressignificar o sentido de paternidade com mais presença na criação das crianças, divisão de tarefas domésticas e atenção à família, os três compartilham o drama extra que pais negros vivem ao ter que educar os filhos a se defenderem contra o racismo, que tem como produto a violência.

Tais preocupações se fundamentam em números. O estudo "Violência armada e racismo: o papel da arma de fogo na desigualdade racial", publicado pelo Instituto Sou da Paz em 2021, mostra que 78% dos 30 mil mortos por armas de fogo no Brasil em 2019 eram negros.

No mesmo ano, o Atlas da Violência mapeou que um negro tinha 2,6 vezes mais chances de ser assassinado no país em relação a um não negro. O primeiro grupo tinha uma taxa de mortalidade de 29,2 por 100 mil habitantes, enquanto o segundo a taxa era de 11,2 para cada 100 mil.

Os pais concordam que dados como esses fazem com que tenham que ensinar aos filhos a não saírem sem documentos por medo de uma abordagem policial violenta ou a não usarem um blusão com capuz para que eles não pareçam suspeitos na rua.

É o que também tem feito o professor de inglês da rede municipal do Rio de Janeiro (RJ), Humberto Baltar, criador da página Pais Pretos Presentes. Somadas todas as redes sociais, seus perfis reúnem cerca de 100 mil seguidores.

A página surgiu de um vácuo que precisava ser preenchido na vida de Baltar, que precisou se informar sobre paternidade quando soube que seria pai do pequeno Apolo, hoje com 3 anos, mas não encontrava conteúdo voltado para a criação de filhos negros.

"Nos grupos que fazia parte, lá em 2018, quem abordava a temática racial era tachado de vitimista", diz. "Fiquei feliz [em saber que seria pai], mas ao mesmo tempo preocupado porque ainda vemos no Brasil muitos casos de racismo também com crianças", completa.

Um episódio ocorrido aos 8 anos marcou Baltar. Na sala de aula, depois da leitura de um livro no qual um coelho branco queria ser preto como a personagem, ele passou por uma situação de preconceito. "Ele [o coelho] se sujou todo de graxa e todos me apontaram e a professora não soube como conduzir. Nem levei para minha mãe", lembra.

Pai do pequeno Benjamin, 4, o professor de relações internacionais da PUC-Minas, Leandro Ferreira, 41, alterna a docência com a administração do podcast Afropai, além das publicações nas redes sociais também com conteúdo voltado para a paternidade negra.

O professor recorda que, durante a infância, tinha referências musicais negras vindas dos pais, mas odiava ser preto. "É isso que o racismo faz: te obriga a ter vergonha do seu cabelo, do seu nariz, dos seus traços. E meus pais não sabiam lidar com isso", diz.

O estudo "Racismo, educação infantil e desenvolvimento na primeira infância", do Comitê Científico do Núcleo de Ciência pela Infância, aponta os efeitos do preconceito racial no desenvolvimento de crianças negras de zero a seis anos.

Entre eles, estão os "impactos negativos em relação a oportunidades para adquirir habilidades e conhecimentos, autopercepção, autoconfiança, saúde física e mental, construção de identidade, relações parentais, rejeição da própria imagem e impacto na autoestima".

Na percepção de Baltar, França e Ferreira, apesar de gradativo, há em curso um processo de tomada de consciência dos pais, sobretudo, os negros. Os três querem criar seus filhos de forma diferente, uma vez que seus pais tinham um perfil provedor, com pouco espaço para afetividade.

"A despeito de particularidades que envolvem um homem negro, ser um pai presente que quer participar de todas as atividades com os filhos, com a casa, cuidar do relacionamento, é um posicionamento político em relação ao mundo que queremos construir", conclui Ferreira.

Erramos: o texto foi alterado

Versão anterior deste texto dizia que Leandro Ferreira era professor de relações institucionais. O correto é relações internacionais. 

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