Em guerra contra obesidade, Chile mata Tony, o tigre da Kellogg's  

Regras mudam rótulos e limitam venda de alimentos açucarados para crianças

​Andrew Jacobs
New York Times | The New York Times

Eles acabaram com o tigre Tony. Puseram fim a Chester Cheetah, o personagem associado aos salgadinhos Cheetos. Proibiram o Kinder Ovo, um chocolate oval que traz um brinquedo como brinde surpresa.

O governo chileno, diante de uma disparada nos índices de obesidade, declarou guerra aos alimentos insalubres, impondo numerosas restrições de marketing, mudanças obrigatórias nas embalagens, e regras de identificação de produtos que têm por objetivo alterar os hábitos de alimentação dos 18 milhões de habitantes do país.

Os especialistas em nutrição dizem que as medidas são a mais ambiciosa tentativa no mundo de redesenhar a cultura alimentar de um país, e podem se tornar um modelo de como reverter a epidemia mundial de obesidade, que, segundo pesquisadores, contribui para quatro milhões de mortes prematuras a cada ano.

"As ações do Chile são realmente significativas, e tomar as medidas adotadas foi muito difícil diante das pressões usuais", disse Stephen Simpson, diretor do Charles Perkins Centre, uma organização de estudiosos que se concentram na ciência e políticas públicas da nutrição e obesidade. As multibilionárias indústrias da alimentação e refrigerantes exerceram pressão semelhante para evitar com sucesso a adoção de medidas regulatórias em muitos outros países.

Desde que a lei de alimentação entrou em vigor, há dois anos, ela vem forçando multinacionais como a Kellogg a remover os personagens que enfeitam as caixas de seus cereais açucarados, e proibiu a venda de doces como os ovos Kinder, que usam brindes para atrair os consumidores menores de idade. A venda proíbe a venda de junk food, como sorvetes, chocolates e batatas chips, nas escolas chilenas, e proíbe publicidade desse tipo de produto em programas de TV e sites dirigidos a audiências jovens.

A partir do ano que vem, os anúncios desses produtos estarão completamente proibidos na TV, rádio e salas de cinema, no horário entre as 6h e as 22h. Em um esforço para encorajar o aleitamento materno, no segundo trimestre deste ano entrará em vigor uma proibição à publicidade de leite em pó.

Ainda quer uma Coca-Cola? No Chile, as bebidas com alto teor de açúcar pagam 18% de imposto, uma das alíquotas mais altas do planeta.

A peça central da iniciativa é um novo sistema de rotulação que requer que as empresas que vendem alimentos embalados exibam sinais de advertência pretos em forma de uma placa de "pare", em produtos com alto teor de sal e açúcar, alta contagem de calorias ou alto teor de gordura saturada.

O setor de alimentos define as regras do governo como abuso de poder. Felipe Lira, diretor da associação setorial Chilealimentos, disse que os novos rótulos sobre nutrição causam confusão e são "invasivos", e que as restrições ao marketing desses produtos se baseiam em correlações cientificamente inapropriadas entre a promoção de alimentos insalubres e o ganho de peso. "Acreditamos que a melhor maneira de abordar o problema da obesidade seja educar o consumidor e mudar os hábitos das pessoas", ele afirmou, via e-mail.

A Pepsi, fabricante do Cheetos, e a Kellogg, fabricante do Frosted Flakes, foram à Justiça, argumentando que os regulamentos violam sua propriedade intelectual. O caso ainda não foi decidido.

Maria José Echeverría, porta-voz da Pepsi, disse que a empresa cumpria rigorosamente as leis e não tinha interesse em derrubá-las, e estava apenas tentando proteger sua capacidade de usar uma marga registrada vigente no Chile.

A Kellogg se recusou a comentar.

A disparada nos índices de obesidade está forçando governos de todo o mundo a enfrentar uma das mais sérias ameaças de saúde pública em uma geração.

Até o final dos anos 80, a subnutrição era generalizada entre os chilenos pobres, especialmente as crianças. Hoje, três quartos dos adultos sofrem de excesso de peso ou são obesos, de acordo com o Ministério da Saúde do país. As autoridades estão especialmente alarmadas com o índice de obesidade entre as crianças chilenas, que está entre os mais altos do mundo - mais de metade das crianças chilenas de seis anos de idade têm excesso de peso ou são obesas.

Em 2016, os custos médicos da obesidade atingiram os US$ 800 milhões, ou 2,4% dos gastos do país com a saúde, uma proporção que os analistas estimam venha a subir a quase 4% em 2030.

Estatísticas assim preocupantes ajudaram na criação de uma coalizão de autoridades eleitas, cientistas e ativistas da saúde pública, que superou a feroz oposição dos fabricantes de alimentos e de seus aliados no governo.

"Foi uma guerra de guerrilha muito árdua", disse o senador Guido Girardi, vice-presidente do Senado chileno e médico, que propôs a nova regulamentação em 2007. "As pessoas têm o direito de saber o que as companhias de alimentos estão colocando nesse lixo e, com a legislação adotada, creio que o Chile tenha feito uma grande contribuição para a humanidade".

"Veneno da nossa era"

Da Índia à Colômbia, passando pelos Estados Unidos, países ricos e pobres vêm batalhando para combater a alta da obesidade - e encontrando resistência feroz das empresas de alimentos, ansiosas por proteger seus lucros.

No Chile, os interesses empresariais postergaram a aprovação da lei por quase uma década, e em duas ocasiões havia tantos lobistas lotando audiências do Congresso quanto ao projeto que o presidente do Senado se viu forçado a suspender as sessões e esvaziar a sala.

Mas a indústria raramente enfrenta adversários como o senador Girardi. Treinado como cirurgião e dotado de talento dramático, ele é uma figura chave na coalizão da presidente Michelle Bachelet. Na longa disputa quanto à lei de alimentação, Girardi, 56, atacou publicamente as empresas de alimentos, chamando-as de "pedófilos do século 21", e antes da posse de Bachelet realizou um protesto de semanas de duração diante do palácio presidencial, com cartazes que acusavam o predecessor dela, Sebastián Piñera, de destruir a saúde do Chile ao vetar uma versão anterior da legislação.

"O açúcar mata mais gente que o terrorismo e os acidentes de automóvel combinados", ele declarou em entrevista, sacudindo uma caixa do cereal Trix como adereço. "É o veneno da nossa era".

Houve outros fatores que tornaram a legislação possível, entre os quais um Legislativo determinado a enfrentar a alta nos custos econômicos da obesidade, e o apoio de Bachelet, socialista que tem formação como pediatra.

Por fim, a pressão da indústria conseguiu aliviar algumas das regras que constavam do texto original, o que inclui um afrouxamento das restrições publicitárias e a remoção de uma medida que proibiria a venda de junk food perto de escolas.

Estranheza no supermercado

Caminhar pelos corredores de um supermercado chileno pode ser uma experiência surpreendente, no aspecto visual. As embalagens do achocolatado Nesquik, da Nestlé, não incluem mais o coelhinho agitado. As velas dançarinas que enfeitam os pacotes do chocolate M&M no mundo todo também se foram.

E há os alertas publicados na porção frontal das embalagens de numerosos produtos.

Barras de cereais, iogurtes e caixas de suco, produtos que por muito tempo foram anunciados como "saudáveis", "naturais" ou "fortificados com vitaminas e minerais", agora portam um ou mais dos sinais pretos de alerta. Uma variedade de molho para saladas light da marca Great Value porta os quatro sinais de advertência, o que significa que ela tem alto teor de sal, açúcar e gordura, e alto valor calórico.

"Eu na verdade nunca prestei atenção aos rótulos", disse a contadora Patricia Sánchez, 32, que tem dois filhos, durante as compras em um supermercado de Santiago, para as quais ela conta com ajuda ocasional de sua filha de sete anos de idade. "Mas agora eles nos forçam a prestar atenção. E se eu não o faço, meus filhos fazem".

Os índices de obesidade chilenos ainda não caíram, e os especialistas dizem que pode demorar anos para que a maneira pela qual as pessoas comem seja modificada de modo significativo. Mas ao concentrar atenções nas embalagens e publicidade de alimentos insalubres que atraem as crianças, a esperança do governo chileno é a de reprogramar a próxima geração de consumidores.

"É preciso mudar todo o sistema de alimentação, e não se pode fazê-lo da noite para o dia", disse a Dra. Cecilia Castillo Lancellotti, antiga diretora de nutrição no Ministério da Saúde chileno, e uma das primeiras proponentes da legislação.

As novas embalagens já criaram um benefício inesperado: as companhias de alimentos estão modificando seus produtos voluntariamente a fim de evitar os temidos rótulos pretos.

De acordo com a AB Chile, uma associação do setor de alimentos, mais de 1,5 mil itens, ou 20% dos produtos vendidos no país, passaram por reformulação em resposta à lei. A Nestlé reduziu o teor de açúcar em seu achocolatado Milo, o McDonald's oferece purê de frutas, iogurte e tomates-cereja como parte de seus Happy Meals, e empresas locais estão lançando novos produtos como frutas secas, bolos de arroz e frutas desidratadas para venda em escolas.

No mês passado, a Coca-Cola deu início a uma campanha publicitária para novas versões de Sprite e Fanta, com a assinatura "livre de rótulos e igualmente ricos" - um reconhecimento de que os refrigerantes não portarão mais os rótulos de advertência porque a empresa substituiu metade do açúcar dos produtos por adoçantes artificiais.

Ben Sheidler, porta-voz da Coca-Cola, disse que a empresa havia criado 32 bebidas novas nos últimos 18 meses, e que 65% de sua linha de bebidas no Chile agora podia ser descrita como portadora de teores baixos ou reduzidos de açúcar.

Um porta-voz da Pepsi disse que dois terços das marcas de bebidas da empresa no Chile também podiam ser descritas como sem açúcar ou portadoras de baixo teor de açúcar, e que mais de 90% de seus salgadinhos tinham baixos teores de sódio e gordura saturada.

Outras empresas adotaram o sistema de rotulação como forma de alardear produtos saudáveis. A Soprole, uma empresa chilena de laticínios, produziu um comercial que mostra crianças apresentando telejornais e explicando o sistema de rótulos de uma maneira que a garotada entenda.

"Originalmente não acreditávamos que os rótulos fariam muita diferença, mas descobrimos em grupos de foco que as crianças realmente prestam atenção neles", disse a Dra. Camilla Corvalan, da Universidade do Chile, que está estudando o impacto do novo sistema de rótulos. "Elas chamam a atenção das mães para os rótulos e dizem que não poderiam levar algo com tantos rótulos à escola porque o professor não permitiria".

Pouco depois de os rótulos começarem a ser usados, a AB Chile divulgou um comercial online que usava celebridades chilenas para atacar a nova regulamentação. Em uma das cenas, um conhecido apresentador de TV, supostamente doente, considera, em sua cama de enfermo, uma bandeja contendo bolachas de água e sal e marmelada - itens que ele diz que a nova lei definiu como insalubres. "Isso é o que minha mãe me serviu a vida inteira e agora não posso mais comer?", ele pergunta, indignado. Outra cena mostra uma atriz tirando um monte de pastilhas de menta de sua bolsa. "Claro que o teor de açúcar delas é alto", ela diz. "Mas só como duas ou três.

O anúncio provocou forte reação adversa na Internet, e a reação ganhou circulação viral. Em um dos contra-ataques, o ator chileno Pablo Schwartz postou um vídeo que o mostrava contemplando uma pilha de pó branco. "Todo mundo diz que cocaína faz mal, claro, mas você cheiraria 250 gramas de uma vez?", ele pergunta, antes de cheirar uma carreira. "Tudo está nas porções".

A associação cancelou o anúncio no qual criticava as novas regras.

O trabalho de implementar as regras cabe a um grupo de assessores técnicos que se reúnem semanalmente no Ministério da Saúde, e oferecem orientação sobre a necessidade de um fabricante de salgadinhos remover de sua embalagem o desenho de um gato dançarino, ou sobre a substituição de uma voz infantil, em um comercial de rádio para salgadinhos de milho, pela voz de um adulto.

"Às vezes é fácil, por exemplo se um cachorro usa óculos e fala como se fosse humano, mas às vezes não é", disse a Dra. Lorena Rodríguez, diretora de nutrição do ministério. "Brigamos, brigamos e brigamos, até chegarmos a um consenso".

O Dr. Jaime Burrows Oyarzún, vice-ministro da Saúde Pública, está confiante em que o governo vencerá nos tribunais, Como principal árbitro dos novos regulamento, ele muitas vezes arca com a maior parte da ira da indústria. Depois da proibição ao Kinder Ovo, um executivo italiano da empresa fabricante e o embaixador italiano no Chile o acusaram de "terrorismo alimentar", em uma visita ao seu escritório, ele recordou em entrevista.

Mauro Russo, diretor executivo da Ferrero, fabricante do Kinder Ovo, disse que a lei havia sido aplicada erroneamente ao seu produto, porque o brinquedo é parte intrínseca do pacote, e não um "truque promocional", que é o termo usado na legislação, com o objetivo de estimular vendas. Ele também contesta que o produto seja insalubre, apontando que os ovos têm 110 calorias e que raros consumidores compram mais de um ou dois por ano. "O impacto do Kinder Ovo sobre a obesidade é muito marginal", ele disse.

Alguns dos ativistas pela boa nutrição imaginam quanto tempo a lei conseguirá sobreviver em sua forma atual. Piñera, o ex-presidente recentemente eleito novamente para o posto, sucederá Bachelet em março; ele é um empresário conservador que vetou o projeto de lei de rotulação em 2011 durante seu primeiro mandato presidencial. O governo dele apoiava, em lugar da lei, uma iniciativa de alimentação financiada por empresas multinacionais, que enfatizava receitas saudáveis, exercício e moderação no consumo de junk food. A campanha foi projeto da primeira dama Cecilia Morel Montes.

"Não precisamos de mais impostos", ela disse em entrevista.

Um porta-voz de Piñera disse que ele provavelmente "reconsideraria a lei e estudaria maneiras de melhorá-la", depois de assumir.

Enquanto isso, outros países latino-americanos, como o Equador e o Brasil, buscam tomar alguns elementos de empréstimo à iniciativa chilena. O Dr. Carlos Monteiro, professor de nutrição e saúde pública da USP, no Brasil, disse que os líderes da região não podiam mais ignorar a alta dos custos médicos associados a doenças como o diabetes e a hipertensão.

"A epidemia de obesidade é muito clara e prejudicial a toda a população, o que inclui a elite política, e nenhum país está obtendo sucesso em controlá-la sem regulamentar o ambiente da alimentação", ele disse. "Fazer nada deixou de ser opção".

Tradução de PAULO MIGLIACCI

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