Aos 104, cientista se prepara para cometer suicídio assistido na Suíça

Legislação local permite que indivíduo provoque a própria morte; prática é proibida no Brasil

Camila Appel
São Paulo | AFP

O cientista inglês David Goodall, 104, deverá morrer nesta quinta-feira (10). No início deste mês, ele se despediu de amigos e familiares na Austrália, onde viveu grande parte da vida, para cometer um suicídio assistido na Basileia, Suíça.

Goodall está lúcido e não tem nenhuma doença terminal, e talvez venha daí a atração da mídia internacional.

Nesta quarta (9), em uma sala lotada de jornalistas, o cientista desatou a cantar, e afirmou que estava ansioso por finalmente obter autorização para morrer.

"Eu não quero mais continuar a viver", disse. "Estou feliz por ter a chance amanhã de dar fim à minha vida, e agradeço a ajuda dos médicos aqui que tornarão isso possível." No suicídio assistido, os médicos preparam a droga letal, mas é o paciente que deve tomá-la. 

Questionado sobre se havia escolhido alguma música para ouvir em seus momentos finais, disse que não havia pensado nisso. "Mas, se tivesse que escolher, acho que seria o final da nona sinfonia de Beethoven", disse antes de cantar um verso de Ode à Alegria, em alemão, e receber aplausos.

Goodall é um reconhecido ecologista e botânico, pesquisador da Universidade de Edith Cowan, na Austrália, país onde morou desde criança. Em 2016, recebeu a prestigiada medalha Ordem da Austrália. 
Disse ter ter tido uma boa vida --até recentemente. "O último ano foi menos satisfatório porque não conseguia fazer as coisas", disse em entrevista à Australian Broadcasting Corporation no mês passado.

"Eu lamento ter chegado a essa idade. Preferiria ser 20 ou 30 anos mais novo." Questionado se tinha tido um feliz aniversário, em abril, respondeu: "Não, eu não estou feliz. Eu quero morrer, e isso não é triste. O triste é ser impedido disso."

Em 2016, a universidade o considerou inapto para continuar seu trabalho como pesquisador e pediu que ele se afastasse, alegando preocupação com sua saúde. Goodall, aos 102, reclamou de "ageism" (preconceito etário) e disse que o episódio o deprimiu. 

A universidade acabou revertendo sua decisão. Ainda assim, a saúde de Goodall continuou se deteriorando. Meses atrás ele caiu em seu apartamento e ficou no chão por dois dias até que a faxineira o encontrasse.

Para ele, é hora de morrer, e o ideal seria fazê-lo onde mora. Na Austrália, porém, só o estado de Victoria legalizou a prática, no ano passado, e a legislação, que entrará em vigor em 2019, só se aplica a pacientes terminais .

O cientista espera que seu caso sirva de exemplo e estimule a legalização do suicídio assistido em outros países.

A Suíça permite o suicídio assistido desde 1942, o que rendeu ao país a fama de estimular o "turismo da morte". Outros países, porém, passaram a criar regulamentações nesse sentido, como Estados Unidos, Bélgica e Holanda.

Em geral, a maioria dos países que preveem esse tipo de prática coloca como condição a existência de uma doença em fase terminal; há casos que pedem prognóstico de vida de seis meses, o que gera polêmicas, já que não há ciência exata nessa definição. 

De acordo com a lei suíça, entretanto, qualquer pessoa com mente sã e que tenha, durante certo período de tempo, expressado um desejo consistente de encerrar sua vida, pode solicitar a chamada morte voluntária assistida. 

A Eternal Spirit, uma das várias fundações da Suíça que ajudam pessoas que querem pôr fim às suas vidas, disse nesta quarta (9) que Goodall passou por duas visitas médicas com profissionais diferentes desde que chegou à cidade há alguns dias. É preciso se certificar, por exemplo, que o solicitante não tem depressão.

A entidade cuida de todo o procedimento por questões fiscais e tributárias. O custo total da morte é de, aproximadamente, 10 mil francos suíços (cerca de R$ 36 mil), mas há opções para quem não tem recursos financeiros. 

Dos 175 suicídios assistidos realizados entre 2012 e 2015, 115 foram em mulheres. A faixa etária predominante é de 60 a 89 anos.

Além da Eternal Spirit, há a LifeCircle, a Dignitas, a Exit --que só atende residentes suíços-- e a Exit Internacional. 

A maioria das fundações suíças pede aos pacientes para beberem pentobarbital sódico, um sedativo eficaz que, em doses fortes o suficiente, faz com que o músculo cardíaco pare de bater. Como a substância é alcalina e queima um pouco quando engolida, a Eternal Spirit optou por infusões intravenosas. 

Um profissional prepara a agulha, mas cabe ao paciente abrir a válvula que permite que a substância de curta duração se misture com uma solução salina e comece a fluir em sua veia. 
Goodall disse que espera que sua morte aconteça por volta do meio-dia de quinta-feira (10) na Suíça. 

Mesmo na Suíça, o assunto divide opiniões. Encontrar médicos que atestassem a decrepitude da saúde de Goodall e que prescrevessem o pentobarbital foi um tarefa difícil, recusada por uma fundação e depois aceita por outra, também por questões ideológicas. Um caso famoso ajuda no debate internacional. 

"Ao contrário do que parece, a morte assistida por uma organização suíça não é uma opção fácil, especialmente para o estrangeiro", diz a advogada Luciana Dadalto, que acompanha o caso na Basileia.

"Há que se respeitar alguns critérios e enfrentar as diferenças de procedimento entre as organizações. Morrer fora de seu país é um ato de desespero e, muitas vezes, de desumanização. É preciso enfrentar outro idioma, outra cultura e, em casos famosos como o de Goodall, a curiosidade da opinião pública."
"Eu preferiria ter morrido na Austrália, e lamento muito que o país esteja atrás da Suíça", disse Goodall.
Ele terá a opção de voltar atrás, caso mude de ideia, até o último minuto. Questionado se tinha alguma hesitação ou dúvida, o homem de 104 anos disse: "Não. Nenhuma".

NO BRASIL

A eutanásia e o suicídio assistido são proibidos no Brasil. 

Em 2012, o Conselho Federal de Medicina aprovou resolução que reconhece o testamento vital, documento em que a pessoa atesta quais tratamentos não quer se submeter no final de vida em caso de doença terminal.

Na prática, porém, ele é pouco usado nos hospitais. As instituições e os médicos alegam que, por falta de legislação específica, há uma insegurança jurídica. 

Eles temem ser processados por familiares do paciente que, muitas vezes, insistem para que se faça de tudo para salvar a vida do doente, mesmo quando não há mais possibilidade de sobrevida e o paciente não queira mais. E defendem que haja uma lei federal regulamentando isso.

Pacientes e familiares também reclamam de falta de preparo e informação das equipes médicas.

"Ainda há muita dificuldade em cumprir a vontade do paciente porque a cultura brasileira transfere essas decisões para a família ou para a equipe de saúde", diz a advogada Luciana Dadalto.

Ela também diz que ainda é necessário esclarecer para os familiares e pacientes que testamento vital não se assemelha a eutanásia ou o suicídio assistido. "O testamento vital é o documento pelo qual o paciente expressar procedimentos médicos aos quais deseja ou não ser submetido, como ressuscitação, respiração e alimentação artificial. Não pode conter pedido de eutanásia ou de suicídio assistido."


Entenda o que é o suicídio assistido e onde ele é permitido

GLOSSÁRIO

Suicídio assistido
O médico ou uma instituição facilitam o acesso a remédios que levam à morte, mas o próprio paciente deve ingeri-los. Será o caso do cientista David Goodall, 104

Eutanásia
Medidas antecipam ou aceleram a morte do paciente, como injetar medicamentos letais ou desligar máquinas essenciais para a manutenção da vida

Ortotanásia
A doença incurável deixa de ser tratada e são tomada medidas para que o paciente morra naturalmente e com conforto, limitando-se a tratar os sintomas. Por exemplo: suspender a quimioterapia para um tumor que não responde mais

Distanásia
Medidas que só alongam o sofrimento de um paciente em estágio terminal. Por exemplo: internação em UTI, isolar o doente da família quando a situação é irreversível


PAÍSES

Brasil
A eutanásia e o suicídio assistido são proibidos no Brasil. Segundo resolução do Conselho Federal de Medicina, o paciente pode definir a quais procedimentos quer ou não quer ser submetido no fim da vida, como reanimação em caso de parada cardíaca

Suíça
O país permite o suicídio assistido desde 1942, o que já rendeu ao país o apelido de "turismo da morte". Não permite a eutanásia

EUA
Alguns estados oferecem possibilidades de terminar a vida. Uns permitem a eutanásia, outros, só suicídio assistido. Pode ser possível levar uma dose letal para casa e só depois decidir quando e se irá tomá-la

Holanda e Bélgica
A legislação é abrangente e polêmica, já que permitirem o suicídio assistido devido a distúrbios mentais

Austrália
Como outros países, no estado australiano de Victoria há uma lei que permite o suicídio assistido em caso de doença em fase terminal, com prognóstico de vida de até seis meses. A previsão é que ela valha a partir de 2019


ARGUMENTOS 

A favor do suicídio assistido

  • Numa sociedade moderna, é estranho falar em santidade da vida humana para aceitar sofrer dores insuportáveis 
  • Algumas formas de suicídio assistido e eutanásia já ocorrem de forma ilegal

Contra o suicídio assistido

  • Essas leis abrem espaço para que a morte prematura se torne um caminho mais fácil e mais barato do que os cuidados paliativos 
  • Os pacientes podem se sentir pressionados para morrer e não serem um fardo a seus parentes

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