Adrenalina em paradas cardíacas salva coração, mas pode agredir cérebro

Médicos dizem que ressuscitação rápida e desfibriladores são essenciais para sobrevivência

Phillippe Watanabe
São Paulo

​A epinefrina (adrenalina) é benéfica ou deletéria ao tratamento de paradas cardíacas fora do hospital? Foi essa pergunta que um estudo recente buscou responder. A questão pode soar estranha, já que a droga tem uso consagrado, mas a pesquisa encontrou um resultado de certo modo paradoxal, embora não invalide o seu emprego.

Nomeado como Paramedic2, o estudo randomizado e duplo-cego (critérios que elevam a qualidade do resultado) avaliou em mais de 8.000 pessoas em parada cardíaca o uso, fora do ambiente hospitalar, de adrenalina ou placebo, as taxas de sobrevivência e os prognósticos neurológicos dos pacientes. A pesquisa foi conduzida no Reino Unido.

Policiais treinam ressuscitação cardiovascular
Policiais treinam ressuscitação cardiovascular - Chaiwat Subprasom/Reuters

A epinefrina, empregada em paradas cardíacas desde os anos 1960, realmente tem efeito positivo na sobrevivência dos pacientes, mas com um porém. Não é incomum a sobrevida ser acompanhada de incapacitação neurológica. 

“A adrenalina pode fazer você ficar vivo, mas com perda cerebral suficientemente grande para não haver qualidade de vida”, diz Marcelo Franken, do programa de cardiologia do Hospital Israelita Albert Einstein. “Vivo e em coma.” 

Os dados do estudo mostram que, dos 4.012 pacientes atendidos com epinefrina, 130 (3,2%) estavam vivos após 30 dias da parada. Já no grupo de 3.995 pessoas que recebeu placebo, 94 (2,4%) permaneceram vivos após os 30 dias. Mesmo com a sobrevida, o problema foi o comprometimento neurológico.

Ludhmila Hajjar, coordenadora da UTI cardiológica do Hospital Sírio-Libanês e diretora clínica do InCor (Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da USP), explica que a droga é vasoconstritora e, por isso, pode gerar isquemia —menor circulação sanguínea em alguns órgãos— ao mesmo tempo em que normaliza os batimentos. 

Os dados, publicado no NEJM (New England Journal of Medicine) devem mudar orientações de uso da droga, diz Sérgio Timerman, diretor do centro de treinamento em emergências da Sociedade Brasileira de Cardiologia.

Para Franken, a aplicação de adrenalina dentro do ambiente hospitalar deve permanecer inalterada. Fora do hospital, em paradas cardíacas prolongadas, em que o atendimento demorou a chegar ou que não houve início de ressuscitação imediatamente após o evento, existe chance de uma reavaliação do uso da droga, diz. 

“Por outro lado, esse dado é suficiente para eu abandonar a adrenalina extra-hospitalar? Não, não é. Não usar adrenalina hoje seria absurdo”, afirma Hajjar. “Até porque estamos falando de uma morte revertida. Hoje não há nada parecido. Temos que descobrir uma maneira de minimizar os efeitos vasoconstritores da adrenalina.”

No dia seguinte à publicação do estudo no NEJM, a Ilcor (Internacional Liaison Committee on Resuscitation), instituição internacional que reúne associações de ressuscitação, divulgou um comunicado no qual afirma que avaliará se os resultados da pesquisa exigem modificações das recomendações internacionais.

“Foi o primeiro estudo controlado com uso de placebo a detectar a sobrevivência a longo prazo após uso de epinefrina”, diz o documento. Em seguida, cita as sequelas neurológicas e a falta de conhecimento que ainda existe sobre a melhor dose de adrenalina e a melhor hora para seu uso —na pesquisa, o tempo entre a chamada da emergência e a aplicação foi de 21 minutos.

Para todos os especialistas ouvidos pela reportagem, a atenção sobre o assunto não deve ser ficar só na adrenalina, mas, sim, na reanimação cardiopulmonar (RCP), que pode e deve ser feita por leigos, e na utilização de desfibriladores automáticos, aparelhos que auxiliam na normalização dos batimentos cardíacos.

Além disso, a especialista do Hospital Sírio-Libanês afirma que não é possível transportar completamente os dados obtidos no estudo para o Brasil. “Na Inglaterra e nos EUA você tem cuidados pré-hospitalares muito mais adequados. A população é mais treinada e o desfibrilador está mais disponível.”

Desse modo, uma das atitudes que poderiam gerar maiores taxas de sobrevivência em paradas, segundo os especialistas, seria um melhor treinamento da população em geral para reconhecer as paradas e agir rapidamente.

Curiosamente, segundo a American Heart Association, a batida de algumas músicas pode ajudar a fazer a manobra de sobrevivência no ritmo certo, entre 100 e 120 compressões por minuto. Entre essas músicas há  “Stayin’ Alive” do Bee Gees, “Crazy in Love” de Beyoncé, “Hips Don’t Lie” da cantora Shakira” e “Walk the Line” de Johnny Cash. 

Há até listas de músicas no Spotify destinadas ao incentivo da manutenção de ritmo entre 100 e 120 compressões por minuto.

Considerando os possíveis efeitos da adrenalina, “vamos dar ênfase numa boa compressão, numa boa desfibrilação. Vamos ver se conseguimos reconhecer imediatamente e tratar rapidamente”, diz Timerman.

Segundo o Ministério da Saúde, em situações de emergência, como compressões de ressuscitação, a recomendação é que sejam acionados os serviços de urgências e emergência móveis, como Samu (192) e o Corpo de Bombeiros (193). A pasta informa que, em 2016, último ano com dados consolidados, houve cerca de 362 mil mortes relacionadas a doenças cardiovasculares.

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