Japoneses sobreviventes das bombas atômicas são tratados em hospital de SP

Radiação está associada a tumores e problemas de tireoide nos hibakushas, como são conhecidos

Takashi Morita, 94, com as mãos na cabeça

Takashi Morita, 94 Eduardo Knapp/Folhapress

Phillippe Watanabe
São Paulo

Barulho alto, um grande clarão, vento e, em seguida, janelas, portas e telhado caindo. É assim que Kunihiko Bonkohara, 78, se lembra do momento, em 6 de agosto de 1945, do impacto da bomba de urânio de Hiroshima —que era chamada de Little Boy, pequeno garoto, em tradução livre.

Kunihiko, à época com cinco anos, foi empurrado para debaixo de uma mesa pelo pai, que, em seguida, deitou-se sobre ele para protegê-lo. Depois que a poeira baixou, os estragos ficaram visíveis.

“Meu pai atrás estava todo sangrado. Eu também, com a minha mão machucada”, diz o sobrevivente, apontando para o braço. “O escritório [onde estavam] tinha mais duas pessoas, também todas sangradas. Mas não morreu ninguém ali.”

Do lado de fora, mais próximo ao epicentro da explosão, a situação era trágica. Cerca de 340 mil pessoas morreram no momento das explosões ou nos cinco anos seguintes, segundo informações da Cruz Vermelha.

Além das queimaduras —que duraram entre 4 e 5 meses—, a radiação levou Tomoko Takeda, 88, à época 15 anos, a perder todos os cabelos, cílios e sobrancelhas.

A então adolescente trabalhava em uma fábrica de bombas e, mesmo com a destruição do local, conseguiu se salvar, mas com marcas que ainda carrega. Sua bengala, cheia de penduricalhos, ajuda a compensar o joelho permanentemente ferido.

Kunihiko e Tomoko fazem parte do grupo de 84 hibakushas, os sobreviventes das bombas atômicas que atingiram o Japão durante a Segunda Guerra Mundial, que vivem no Brasil. E até hoje, por causa dos possíveis efeitos da radiação, os ex-moradores de Hiroshima e Nagasaki precisam de acompanhamento médico.

Os dois, junto de outros 30 hibakushas, foram atendidos no Hospital Santa Cruz, em São Paulo, na segunda (8) para suas avaliações rotineiras. O centro médico é um dos que oferecem o procedimento, custeado pelo governo japonês, segundo Julio Yamano, diretor técnico do hospital.

A radiação proveniente das bombas atômicas pode ter consequências a longo prazo, principalmente para quem estava mais perto dos locais da explosão.

“Os que atualmente estão vivos sofrem mais com cânceres em geral, linfomas, leucemia, catarata [por olhar diretamente para a explosão] e problemas de tireoide”, diz Hideki Taniguchi, vice-diretor do Hospital Genbaku da Cruz Vermelha Japonesa, em Nagasaki —onde foi lançada, em 9 de agosto, uma bomba de plutônio, apelidada de Fat Man (homem gordo, em tradução livre).

Esse mesmo hospital foi criado em 1958, especialmente para as vítimas das bombas atômicas lançadas contra o Japão pelos EUA, em 1945. Hoje, 23% dos pacientes do local são hibakushas.

No hospital de Hiroshima dedicado aos sobreviventes das bombas, 63% das mortes de hibakushas estão associadas a cânceres. No de Nagasaki, a taxa é de 56%

O próprio médico tem relação direta com as explosões. Taniguchi é filho de um hibakusha, o que acabou despertando seu interesse médico para o assunto.

Os hibakushas no Japão e os espalhados pelo mundo, como os do Brasil, passam anualmente por um check-up para verificar se alguma doença decorrente da radiação da bomba está se desenvolvendo.

A cada dois anos, especialistas japoneses em radiação proveniente das bombas visitam o hospital para acompanhar os check-ups.

“Essas pessoas iam para o Japão anualmente. Mas, como a população começou a envelhecer, ficou muito difícil para alguns fazerem essa viagem”, diz Yamano. “Então, em 2004 começamos a fazer o check-up aqui no Brasil.”

Felizmente, nenhum dos pacientes com quem a reportagem conversou no dia do check-up apresentavam problemas de saúde relacionados à radiação. Os pacientes mais graves já morreram. No início do projeto, eram 130 pacientes, e o hospital documentou diversos casos de cânceres gastrointestinais entre eles.

Takashi Morita, 94, fundador do grupo brasileiro de sobreviventes da bomba, teve deficiência em seus glóbulos brancos pouco depois do fim da guerra. Soldado japonês durante a guerra, ele saía de Hiroshima no momento da explosão e foi atingido nas costas. “Machucou tudo aqui, queimou tudo”, diz, apontando a cabeça e a nuca.

Depois de cair e levantar, ele conta que começaram a surgir diversos focos de incêndio ao seu redor e que ainda conseguiu oferecer ajuda a algumas pessoas. “Isso não esquece” [sic], diz, repetidamente, Takashi.

“Minha mãe também era vítima de bomba atômica, então os dois eram companheiros da mesma luta”, diz Yasuko Morita, 71, filha de Takashi, 94. Segundo ela, a mãe costumava contar sobre a quantidade de moscas —então associadas a animais e pessoas mortas— que havia em Hiroshima logo que a cidade começou a se restabelecer. “Falavam que em Hiroshima não ia nascer nenhuma vida”, diz Yasuko.

Queimaduras, destruição, radiação. “E depois caiu a chuva negra”, conta Kunihiko. “Eu estava de camisa branca e caiu uma mancha preta”, diz, referindo-se à precipitação com fuligem e radiação pós-detonação.

Com apenas dois anos, Junko Watanabe, 75, foi uma das que tiveram contato com chuva negra. Passou os dias seguintes com forte diarreia. “Comida não parava. Então meus pais pensaram que Junko ia morrer”, diz, com lágrimas nos olhos.

Até os 60 anos, Junko não sabia da sua relação com a 2ª Guerra Mundial. Foi numa visita aos pais, em Hiroshima, que a história finalmente foi revelada.

Vários dos hibakushas preferem não tocar no assunto —inúmeros têm problemas de instabilidade emocional, depressão e estresse pós-traumático, segundo a Cruz Vermelha em Hiroshima e Nagasaki.

É o caso de Seiji Mukai, 83. “Não dá para conversar. Conversar sente um mal”, afirma, apontando para o peito. Os pais de Seiji estavam no centro de Hiroshima no momento da explosão. Ambos morreram. “Papai 51 anos, mamãe 47 anos”, diz, sobre as idades que tinham quando a bomba foi lançada sobre a cidade.

Mesmo dentro da família o assunto era difícil de ser tratado. “Quando eu perguntava por que não queria conversar, ele falava que a gente ia sofrer, então que eu não precisava saber”, afirma Rosa Mukai, filha de Seiji.

Cozinheiro de profissão, Seiji também dedicou parte de sua vida militando por paz.

Segundo a Cruz Vermelha, ainda há 190 mil hibakushas vivos e 200 mil hibakushas de segunda geração (filhos das pessoas afetadas). No Japão, os filhos dos hibakushas são aleatoriamente escolhidos para também passarem por check-ups, para verificar se a radiação das bombas tem algum efeito sobre eles.

Tópicos relacionados

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.