Descrição de chapéu The New York Times

Como fabricantes de junk food influenciam a política nutricional da China

Organização bancada por empresas como Coca-Cola prega exercício e esquece alimentação saudável contra obesidade

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​Andrew Jacobs
Nova York | The New York Times

A campanha 10 Minutos Felizes, criada pelo governo chinês para encorajar estudantes a fazerem 10 minutos de exercícios por dia, pode parecer um passo elogiável rumo à melhora da saúde pública em um país que vem enfrentando níveis alarmantes de obesidade infantil.

Mas essa iniciativa, como outros esforços chineses que enfatizam os exercícios como melhor maneira de perder peso, são notáveis pelo que não mencionam: a importância de cortar o consumo de junk food altamente calórico e de bebidas açucaradas, que se tornaram onipresentes na segunda maior economia do planeta.

Latas de Coca-Cola em loja em Beijing
Latas de Coca-Cola em loja em Beijing - Shiho Fukada/The New York Times

A mensagem chinesa de que a boa forma é que importa foi formulada em boa parte pela Coca-Cola e outros gigantes ocidentais dos alimentos e bebidas, de acordo com um par de novos estudos que documentam de que maneira essas empresas ajudaram a dar forma a décadas de esforços científicos chineses, e às políticas públicas do país quanto a doenças relacionadas à dieta e à obesidade, por exemplo o diabetes tipo 2 e a hipertensão.

As constatações, publicadas na quarta-feira (9) pelas revistas acadêmicas The BMJ e The Journal of Public Health Policy, mostram como a Coca-Cola e outras multinacionais, operando por intermédio de uma organização chamada International Life Sciences Institute (ILSI), cultivaram importantes autoridades chinesas em um esforço por conter o crescente movimento pela regulamentação dos alimentos e refrigerantes, que vem avançando vigorosamente no Ocidente.

O ILSI é uma organização internacional sediada em Washington e financiada por muitos dos maiores nomes entre os fabricantes de alimentos, entre os quais Nestlé, McDonald's, Pepsi e Yum! Brands, além da Coca-Cola. O instituto tem 17 filiais, a maioria das quais em países de mercado emergente como México, Índia, África do Sul e Brasil, e se define como uma ponte entre cientistas, autoridades governamentais e as empresas multinacionais de alimentos.

Mas na China o ILSI está tão bem posicionado que dirige suas operações de dentro do Centro de Controle e Prevenção de Doenças, uma organização governamental em Pequim. Na verdade, quando solicitado a comentar sobre os estudos, o ministério divulgou um comunicado assinado não por um membro do governo mas pelo diretor do ILSI na China.

O diretor, Chen Jushi, disse que a organização sempre havia enfatizado a importância tanto do exercício quanto de uma dieta bem balanceada, e que suas atividades "se baseiam na ciência e não são afetadas por negócios de qualquer espécie".

O relacionamento estreito entre as autoridades de saúde mais importantes e o instituto vai muito além do que as empresas conseguiram promover no Ocidente.

A Coca-Cola tentou táticas semelhantes nos Estados Unidos, formando parceria com cientistas influentes e criando uma organização sem fins lucrativos chamada Global Energy Balance Network a fim de promover a mensagem de que o exercício, e não dietas, era a solução para a crise da obesidade no país.

Mas em 2015, depois de um artigo do The New York Times sobre essa campanha, e de protestos subsequentes dos ativistas da saúde pública, a empresa dissolveu a organização.

Na China, a partir do final da década de 1990, o ILSI organizou conferências sobre obesidade, pagou as despesas de cientistas chineses que compareceram a eventos e ajudou a criar campanhas nacionais de saúde cujo objetivo era combater a epidemia nacional de obesidade, de acordo com Susan Greenhalgh, cientista social e especialista em questões chinesas na Universidade Harvard, e autora de ambos os estudos.

As iniciativas de saúde pública chinesas quase sempre promovem o exercício, e raramente mencionam o valor de cortar calorias ou reduzir o consumo de alimentos industrializados e bebidas açucaradas, que muitos especialistas consideram como passos essenciais para perder peso, para manter um peso mais baixo, e para melhorar a saúde.

"Não se pode usar apenas a atividade física para eliminar a obesidade, hipertensão ou diabetes", disse Barry Popkin, professor de nutrição a Universidade da Carolina do Norte em Chapel Hill.

O professor Popkin não se envolveu no estudo, mas trabalhou durante décadas na China para ajudar o país a desenvolver diretrizes de nutrição e políticas de alimentação —esforços que ele disse terem sido bloqueados, em diversas ocasiões, por autoridades bem posicionadas e alinhadas com o ILSI.

Dada sua experiência, ele disse que as conclusões de Greenhalgh não surpreendem. "Ao longo de diversas décadas, a Coca-Cola e o ILSI trabalharam para prevenir qualquer forma de política de alimentação que beneficiasse a saúde pública", ele disse. "O que eles vêm fazendo na China é insidioso".

O ILSI afirmou em comunicado que tem o compromisso de "apoiar pesquisas sobre alimentos e nutrição baseadas em provas", e que não conduzia atividades de lobby ou fazia recomendações quanto às políticas públicas dos países em que opera.

"O ILSI não professa ter sido perfeito em nossos 40 anos de história", o comunicado afirma. "Não é surpresa que solavancos tenham acontecido ao longo do caminho. É por isso que o ILSI analisou as melhores práticas e tem o compromisso de garantir a integridade científica nas pesquisas sobre nutrição do setor de alimentação."

A Coca-Cola declarou em comunicado que também vem mudando a maneira pela qual financia pesquisas científicas, promovendo mais transparência e abandonando sua prática de oferecer a maioria das verbas para dados estudos. Nos últimos anos, acrescentou a empresa, ela vem tentando combater o avanço da obesidade na China ao oferecer uma gama de bebidas sem açúcar, e por meio de rotulação mais precisa sobre os aspectos nutricionais de seus produtos. "Reconhecemos que açúcar demais não faz bem a pessoa alguma", a empresa afirmou.

As constatações de Greenhalgh se baseiam em entrevistas com autoridades e cientistas chinesas, e em uma revisão de documentos públicos apresentados pela Coca-Cola e pelo ILSI.

Ela disse que os esforços da indústria tiveram imenso sucesso, em parte porque falta à China uma imprensa livre ou organizações de fiscalização que poderiam ter criticado o relacionamento.

Em apenas algumas décadas, a China deixou de ser um país que sofria de escassez de alimentos e passou a enfrentar uma disparada na obesidade e nas doenças crônicas associadas a uma má dieta. Mais de 42% dos adultos chineses sofrem de excesso de peso ou obesidade, de acordo com pesquisadores chineses, proporção duas vezes mais alta do que a registrada em 1991. Nas cidades chinesas, quase um quinto das crianças são obesas, de acordo com pesquisas do governo.

O avanço da obesidade acompanha de perto a prosperidade crescente da Coca-Cola, que começou na década de 1980, quando Pequim adotou a economia de mercado, depois de décadas de isolamento. Em 1978, a Coca-Cola esteve entre as primeiras empresas internacionais a receber autorização para operar no país, e o ILSI chegou pouco depois. Buscando identificar cientistas influentes com os quais pudesse trabalhar, a organização encontrou uma parceria em Chen Chunming, conhecida nutricionista que foi a primeira presidente da Academia Chinesa de Medicina Preventiva, a predecessora do Centro de Controle e Prevenção de Doenças chinês.

Em 1993, Chen se tornou presidente do ILSA-China, e continuou a ser consultora sênior da organização até sua morte, no ano passado. Greenhalgh e Popkin dizem que Chen teve papel central na contenção das tentativas de conter a alta da obesidade por meio da divulgação de informações sobre os efeitos prejudiciais do consumo de alimentos industrializados e de refrigerantes açucarados.

Em entrevistas, diversos especialistas chineses em nutrição disseram que não se sentem incomodados pelo relacionamento entre o ILSI e empresas multinacionais de bebidas como a Coca-Cola, e defendem a integridade dos pesquisadores apoiados pelo ILSI, elogiando sua competência profissional.

He Jiguo, professor de nutrição de Colégio de Ciências da Alimentação e de Engenharia da Nutrição, na Universidade Agrícola da China, disse que a Coca-Cola só havia amplificado a ideia de que o exercício é essencial para a saúde humana, algo que o Partido Comunista, que governa a China, defende há muito tempo.

"A chave é que, não importa o que digam a Coca-Cola ou outras empresas de bebidas, esses refrigerantes são só um produto", ele disse. "Ninguém é forçado a comprá-los."

Com a queda do consumo de bebidas açucaradas no Estados Unidos e Europa, a Coca-Cola cada vez mais vê a China e outros países em desenvolvimento como essenciais à manutenção de seus lucros. A China é o terceiro maior mercado da empresa.

Martin McKee, professor de saúde pública europeia na Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres, disse que o ILSI , bem como outras organizações bancadas pela indústria que representam os interesses das empresas de tabaco, álcool e fast food, encontra terreno fértil nos países mais pobres porque neles as burocracias de saúde pública são fracas.

McKee, que escreveu um editorial para acompanhar a publicação do estudo em The BMJ, disse que essas organizações muitas vezes declaram ser centros independentes de pesquisa, mas se recusam a revelar informações detalhadas sobre de onde vêm suas verbas.

Ele diz que essas organizações apoiam e divulgam estudos científicos cujos resultados certas vezes turvam as águas sobre questões contenciosas como o fumo, o álcool ou o consumo de refrigerantes.

"Elas muitas vezes pinçam dados de maneiras que iludem os leitores, e retratam as questões como tão terrivelmente complexas que nada pode ser feito quanto a elas", disse McKee.

Tradução de Paulo Migliacci 

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