Como a medicina evoluiu das cirurgias sem anestesia ao uso de antissépticos

Historiadora relembra os leitos contaminados e os jalecos sujos do século 19 em 'Medicina dos Horrores'

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São Paulo

Nos antigos cemitérios ingleses estão enterradas testemunhas silenciosas das desumanas cirurgias realizadas no século 19. Eram os tempos terríveis das dolorosas amputações de pernas e braços realizadas sem anestesia por hábeis e rapidíssimos cirurgiões, com mãos e roupas de passeio sujas.

Nos hospitais com leitos fétidos e contaminados, muitos pacientes morriam poucos dias depois da operação por infecção generalizada. Os familiares dos raros sobreviventes, quando eles voltavam para casa, diziam com justa razão: "graças a Deus".

Esse período é retratado pela historiadora Lindsay Fitzharris em seu livro "Medicina dos Horrores "“ A história de Joseph Lister, o homem que revolucionou o apavorante mundo das cirurgias do século 19".

A autora descreve as operações realizadas por cirurgiões sem proteção contra contaminações, sem os mínimos cuidados de higiene e na presença de um público de aprendizes e curiosos.

O período vitoriano, de significativo avanço do poderio militar e econômico inglês -- época do reinado da rainha Vitória, de 1837 a 1901 -- marca também importante mudança na medicina e na atenção aos doentes e no tratamento de enfermidades.

Ela começou quando o médico britânico Joseph Lister (1827-1912) passou a recomendar, após obter sucesso com seus pacientes, que os médicos lavassem as mãos antes de examinar os doentes e de realizar intervenções operatórias sob a caridosa anestesia com éter ou clorofórmio, iniciada naqueles anos.

Colagem digital com diversos elementos relacionados aos tratamentos médicos antigos: dois soldados amputados se consolando, próteses de pernas e braços, tratamentos cerebrais, açougueiro afiando suas facas em frente a um grupo de enfermeiras sem face.
"Medicina dos Horrores" relembra como cirurgias eram feitas no século 19 - Carolina Daffara

​Fitzharris, especializada em história da ciência e medicina, mostra em seu livro a evolução das observações e estudos de Lister para afastar a teoria da geração espontânea das doenças e sua transmissão por "miasmas".

Quando Lister chega ao University London College, levou consigo o microscópio de seu pai, um estudioso da óptica. O aparelho, considerado supérfluo na época para a prática médica, serviu ao longo dos anos para seus estudos.

Um dia, o jovem estudante observou no sangue de um tumor retirado em uma operação "células bem delineadas".

Lister também observou que muitas fraturas simples, sem a ruptura da pele, cicatrizavam sem problemas. Concluiu que "alguma coisa" penetrava no ferimento, de fora para dentro. Foi a origem do "método de oclusão" (ou do curativo), que procurava afastar o ar contaminado circulante ao redor de um ferimento.

Lister, com base nos estudos de Louis Pasteur sobre organismos vivos no processo da fermentação de vinhos, concluiu que não era o ar em si, mas o seu componente microbiano a causa das infecções hospitalares.

Por isso, decidiu experimentar antissépticos profilaticamente nas fraturas expostas. Esses acidentes apresentavam alto índice de infecção, evoluindo em seguida para a septicemia e a morte.

Ele então passou a lavar e limpar as feridas abertas das fraturas com ácido carbólico (fenol), por vários dias e repetidamente por horas.

Com o ótimo resultado obtido pelo seu método, a mortalidade pós-operatória caiu de 50% para 15% entre 1865 e 1869. Em 1910, o nível de mortalidade caiu para 3% devido ao uso do fenol como antisséptico em cirurgia.

A revista médica The Lancet, editada até os dias de hoje no Reino Unido, publicou há 152 anos, no dia 16 de março de 1867, o trabalho pioneiro de Lister: "Um novo método para tratamento de fraturas expostas, abscessos, etc. com observações sobre as condições de supuração".

Médicos europeus e norte-americanos não aceitaram a teoria microbiana da contaminação no século 19. Não só não aceitaram como contraindicaram as recomendações de Lister para os tratamentos de ferimentos e abscessos.

Três anos após introduzir seu método, ele foi chamado para atender a rainha Vitória, da Inglaterra, que apresentava um grave abscesso na axila, com 15 cm de comprimento, de alto risco para uma época em que o tratamento de uma infecção era cirúrgico.

Após a paciente ser anestesiada com clorofórmio, Lister fez a incisão no abscesso, lavou e limpou a área, usando o ácido carbólico. Colocou um dreno e fez o curativo.

Foi um sucesso. Mas, se piorasse, poderia ter evoluído para a fatal septicemia, frequente naquela época.

A maior parte da classe médica do século 19 recusou as conclusões de Joseph Lister. Consideraram suas propostas charlatanice, mas o tratamento bem-sucedido da rainha reforçou a confiança no método de Lister e ajudou a divulgá-lo.

A antissepsia sugerida por Lister demorou ainda alguns anos para ser totalmente aceita. E sua adoção marcou a aceitação da teoria microbiana pela comunidade médica, assinalando o momento em que a medicina e a ciência se fundiram, como destaca Fitzharris no final do livro.

Medicina dos Horrores
Autora: Lindsay Fitzharris; editora Intrínseca; tradução de Vera Ribeiro; 320 págs; R$ 59,90 (ebook R$ 39,90)

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