Sorriso largo, tintura do cabelo em dia, maquiagem impecável. As selfies de Ana Michelle Soares parecem mudar só de fundo —praia, cachoeira, torre Eiffel e muitos quartos de hospital. Paciente de câncer de mama metastático há cinco anos, Ana Mi ficou conhecida ao criar o perfil @paliativas no Instagram, no qual documenta seu cotidiano e sua rotina médica de forma aberta.
No seu livro, “Enquanto eu respirar”, recém-lançado pela Sextante e que já está indo para a segunda edição, ela narra como a sua relação com a morte mudou a partir do diagnóstico. “As pessoas querem falar sobre isso, mas há tanto medo que fica um clima pesado”, disse Soares, na quinta-feira (12), em debate promovido pela Sextante e pela Folha, no Teatro Folha, em São Paulo.
Uma de suas motivações para criar o perfil, em 2016, foi as histórias que ouvia de pacientes que deixavam de viajar ou ir a festas por decisões médicas. “Pelo amor de Deus! Eu sei que dá para dar um jeito na questão da imunidade ou em outras situações. É só o médico se dispor a conversar”, afirmou.
Ela reclama: “A gente vira paciente e perde a autonomia. De repente está todo mundo decidindo tudo por você.”
Após descobrir que não teria mais possibilidade de cura, Soares decidiu tornar-se protagonista do próprio tratamento e acabou virando referência no ativismo pelo direito aos cuidados paliativos.
A ideia por trás desse tipo de tratamento é priorizar a qualidade de vida do paciente em estado terminal e amenizar seu sofrimento, em vez de tentar prolongar a sobrevida artificialmente. Ele envolve uma abordagem holística da doença, levando em conta o bem-estar emocional e psíquico.
“A princípio, o cuidado paliativo não poderia ser nunca negado. Quem prefere sofrer?”, questionou a geriatra Ana Claudia Arantes, que também estava no debate.
Autora do livro “A morte é um dia que vale a pena viver”, também publicado pela Sextante, Arantes afirmou que há uma mudança cultural em curso para tirar o estigma desses procedimentos. "O motivo pelo qual se nega o cuidado paliativo tem a ver com esse medo de aceitar a morte, como se você fosse morrer cinco minutos depois. Ninguém está falando em desistir, mas em viver.”
Para a geriatra, mesmo com o maior acesso a informações sobre o tema, há um vácuo na formação dos médicos na área de cuidados paliativos e tratamento de dor. O uso de morfina, segundo ela, ainda é estigmatizado e há pouco acesso ao tratamento de dor no Brasil.
O advento das redes sociais e de perfis como o @paliativas —atualmente com 50 mil seguidores— tem impulsionado essa transição cultural e transformado a ideia de ser “paliativo” em um marcador de identidade do qual o paciente pode se apropriar. “É o paciente que está fazendo a comunicação de más notícias”, disse Ana Michelle Soares, que é jornalista.
Arantes concorda. Ela conta que antes dava palestras sobre cuidados paliativos para plateias muito pequenas, de 20 pessoas, mas agora as audiências cresceram e ela é otimista em relação ao movimento de aceitação dessa vertente da medicina.
Soares acredita que toda pessoa saudável deveria fazer o exercício de refletir sobre a morte e o tempo que resta para entender as próprias urgências. “A vida tem muito mais sentido quando você descobre que ela acaba.”
Apesar de o debate abordar temas como morte, doenças sem cura, demências, não faltou humor. A plateia, lotada, riu várias vezes das falas da médica e da paciente. Arantes contou que é comum ouvir o pedido de "anestesiem a minha mãe porque eu não aguento vê-la assim". "O problema não está na mãe, mas no filho que não aguenta o sofrimento. Não adianta apagar a paciente..."
Soares confidenciou que não quer morrer em casa porque tem “horror da ideia de ser levada morta de elevador". Que inventou, com outros pacientes, o Oncocard, cartão imaginário que permite explorar a boa vontade dos outros ("Uma amiga estava demorando para confirmar a presença na minha festa de aniversário porque tinha outros dois aniversários no mesmo dia. Eu perguntei: algum deles sofre de doença crônica? Isso é OncoCard").
O evento, que fez parte do ciclo de debates Diálogos Folha, foi mediado por Claudia Collucci, repórter especial do jornal.
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