Descrição de chapéu The New York Times

China encoraja cidadãos a denunciar quem pode ter coronavírus

Autoridades estão caçando e rastreando pessoas de Wuhan, a cidade onde a epidemia começou

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Paul Mozur
Guangzhou (China) | The New York Times

Uma pessoa foi recusada por hotel após mostrar seu documento de identidade. Outra foi expulsa por aldeões locais temerosos. Uma terceira viu suas informações pessoais mais delicadas vazarem online, depois de se registrar junto às autoridades.

Esses relatos são de Wuhan, capital da província de Hubei e epicentro de uma epidemia viral que vem se expandindo rapidamente e matou mais de 563 pessoas na China, causando uma onda de medo em todo o mundo. Essas pessoas se tornaram párias na China, e estão entre os milhões de chineses impedidos de voltar para suas casas e temidos como potenciais portadores do misterioso coronavírus.

Em todo o país, a despeito da vasta rede de vigilância da China, com seus sistemas de reconhecimento facial e câmeras de alta qualidade, usada com cada vez mais frequência para rastrear o 1,4 bilhão de habitantes do país, o governo se voltou a técnicas tradicionais dos regimes autoritários –por exemplo estabelecer postos de controle e pedir que vizinhos denunciem uns aos outros–, como parte de seus esforços para conter o surto.

As autoridades precisaram de cinco dias para contatar Harmo Tang, universitário em Wuhan, depois de ele voltar à sua cidade de origem, Linbai, na província de Zhejiang, leste do país. Tang informou que já tinha se colocado em isolamento quando as autoridades locais solicitaram suas informações pessoais, entre as quais nome, endereço, número de telefone, número do documento de identidade e a data em que ele havia retornado de Wuhan. Dias depois, as informações pessoais dele começaram a circular online, bem como informações sobre outras pessoas que tinham voltado de Wuhan a Linbai.

 

As autoridades locais não ofereceram explicações mas retornaram dias depois para afixar fitas de isolamento policiais em sua porta e afixar um cartaz que informava aos vizinhos de que uma pessoa que tinha voltado de Wuhan vivia no local. O cartaz incluía um número de telefone para denúncias caso alguém visse Tang ou qualquer membro de sua família sair do apartamento. Tang disse estar recebendo cerca de quatro telefonemas ao dia de diferentes departamentos do governo local.

“Na verdade, não há muita empatia”, ele disse. “O tom que eles vêm adotando não é de alguém que esteja cuidando dos outros. É um tom de advertência. Não me sinto muito confortável a respeito”.

A China evidentemente tem muitos motivos para rastrear potenciais portadores da doença. A epidemia do coronavírus levou ao isolamento de certas áreas do país, virtualmente paralisou a segunda maior economia do planeta e estabeleceu muros entre a China e o restante do mundo.

Ainda assim, alguns dirigentes chineses apelaram por compreensão, à medida que crescem as preocupações quanto a preconceitos. Especialistas advertiram que essa marginalização de um grupo já vulnerável pode se provar contraproducente, erodindo ainda mais a confiança pública e levando as pessoas que precisariam ser avaliadas e monitoradas a optar por se manterem ainda mais invisíveis.

“Estamos prestando atenção a essa questão”, disse Ma Guoqiang, secretário do Partido Comunista chinês em Wuhan, durante uma entrevista coletiva na cidade terça-feira.

“Acredito que haja quem possa tentar rotular as pessoas de Hubei, ou denunciá-las, mas também acredito que a maioria dos chineses tratará as pessoas de Hubei com bom coração”, ele acrescentou.

Amplas redes de voluntários e organizações cristãs vêm oferecendo ajuda publicamente, mas muitos líderes locais concentraram seus esforços em encontrar e isolar as pessoas vindas de Hubei. Em outdoors e telões, vídeos e mensagens de propaganda alertam as pessoas para que fiquem dentro de casa, usem máscaras e lavem as mãos.

Na província de Hebei, no norte da China, um município ofereceu recompensa de mil yuan, cerca de US$ 140, para cada denúncia por seus moradores de uma pessoa de Wuhan. Imagens online mostravam cidades instalando bloqueios de rua ou convocando homens como membros auxiliares das forças locais de segurança, para impedir a entrada de forasteiros. Alguns moradores de edifícios de apartamentos barricaram as portas de seus blocos, usando para isso as bicicletas de uso compartilhado que são onipresentes na China.

Na província de Jiangsu, no leste do país, a quarentena se tornou prisão quando as autoridades usaram barras metálicas para travar a porta de uma família que havia retornado de Wuhan pouco dias antes. Para obter comida, a família depende de vizinhos que descem mantimentos para eles por uma corda que leva à sacada dos fundos do apartamento, de acordo com uma reportagem na imprensa local.

Preocupado com a segurança de seus filhos, diante do agravamento das condições, Andy Li, que trabalha com tecnologia em Wuhan e estava visitando Pequim com sua família, alugou um carro e começou a dirigir rumo ao sul, para Guangdong, em um esforço por encontrar refúgio com parentes que vivem lá. Em Nanjing, ele foi recusado por um hotel, antes de conseguir um quarto em um hotel de luxo.

Lá, ele adotou uma quarentena voluntária de quatro dias para sua família, até que as autoridades locais ordenaram que todas as pessoas de Wuhan se dirigissem a um hotel ao lado da estação ferroviária central da cidade. Li disse que o hotel da quarentena não parecia estar fazendo um bom trabalho em termos de isolar os hóspedes. Entregadores de comida entravam e saíam, e brechas nas portas e paredes permitiam circulação.

“Eles estão trabalhando só para isolar as pessoas de Wuhan das pessoas de Nanjing”, disse Li. “Pouco se importam caso as pessoas de Wuhan infectem umas às outras”.

“Não estou me queixando do governo”, disse Li. “Sempre haverá lacunas nas políticas. Mas, de um jeito bem egoísta, estou realmente preocupado com meus filhos.”

Em todo o país, a resposta das autoridades muitas vezes se assemelha às mobilizações em massa da era de Mao Tsé-tung e não à magia tecnocrática e baseada em dados mostrada na propaganda sobre o Estado de vigilância que vem surgindo na China. Elas recorreram às técnicas empregadas por Pequim para combater a epidemia de Síndrome Respiratória Aguda Grave (Sars), outra doença mortífera, em 2002 e 2003, quando a China era muito menos sofisticada tecnologicamente.

Postos de controle nos quais pessoas são examinadas em busca de febres surgiram em pedágios, nos portões de entrada de complexos de apartamentos e em hotéis, lojas de mantimentos e estações de trem.

Em muitos casos, os operadores dos termômetros laser que medem a temperatura das pessoas não os aproximam o bastante da testa da pessoa examinada, o que resulta em leituras baixas demais. Essas leituras se provaram inúteis, por exemplo no caso de um homem da província de Qinghai, no leste do país, que a polícia está investigando pela suspeita de que tenha encoberto seus sintomas para poder viajar.

 
As autoridades usaram sistemas computadorizados que rastreiam documentos de identidade –que precisam ser usados se uma pessoa vai fazer viagens longas ou se hospedar em hotéis– a fim de arrebanhar os residentes de Wuhan. Mas um artigo sobre o sistema de identidade, no Diário do Povo, o jornal oficial do Partido Comunista chinês, incluía um apelo aos passageiros de trens e aviões para que se identificassem junto às autoridades.

As campanhas mudaram a vida dos chineses de maneiras inesperadas. Jia Yuting, 21, estudante em Wuhan, já estava de volta à sua cidade de origem no centro da China há 21 dias – ou seja, chegou antes da entrada em vigor do período de quarentena, há 14 dias – quando foi notificada de que seu avô estava doente, em uma aldeia próxima. Durante uma visita a ele, ela seguiu as instruções de uma transmissão que ouviu nos alto-falantes da aldeia e registrou seus detalhes pessoais junto ao comitê local do Partido Comunista.

Pessoas usando máscaras na cidade chinesa de Wuhan, em frente a uma loja, são impedidas de entrar em uma loja onde os produtos estão esgotados
Pessoas usando máscaras na cidade chinesa de Wuhan, em frente a uma loja, são impedidas de entrar em uma loja onde os produtos estão esgotados - Anthony Wallace/AFP

Quando uma professora com quem ela havia estudado no ginásio entrou em contato para perguntar como estava sua saúde, por meio do app de mensagens WeChat, Jia percebeu que que informações sobre ela haviam vazado online e continuavam a ser difundidas por uma lista. Mais tarde, ela recebeu um telefonema ameaçador de um homem que morava em sua cidade de origem.

“Por que você voltou de Wuhan? Deveria ter ficado lá. Sua cadela de Wuhan!”, Jia se recorda de ele ter dito.

As autoridades não lhe ofereceram explicação sobre como aquilo tinha acontecido, e insistiram em que esses vazamentos não atrapalham a vida cotidiana das pessoas. Três dias depois que ela visitou a aldeia, seu avô morreu. As autoridades locais imediatamente informaram sua família de que ela não estava autorizada a voltar à aldeia para prestar seus respeitos finais, no funeral que aconteceria mais de três semanas depois de seu retorno de Wuhan.

“Sinto que os aldeões eram ignorantes e que o governo não está ajudando; em lugar disso, vaza informações em toda parte sem informar às pessoas de que não tenho qualquer sintoma”, ela disse, acrescentando que se sentia culpada por não ter podido consolar o avô.

“Eu era muito próxima ao meu avô. Acho que isso é desumano –é cruel”, disse Jia.

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