Pioneira em saúde da família em SP, missionária canadense deixa o Brasil

Após 25 anos de trabalho na zona leste, irmã Monique Bourget aponta gargalos no SUS, como na oncologia, e avanços

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São Paulo

A médica e freira canadense, irmã Monique Bourget, 54, uma das pioneiras em saúde da família na capital, parte no próximo dia 29 para a África, após 25 anos de trabalhos no SUS da zona leste, região mais populosa do município.

A irmã canadense Monique Bourget, missionária pioneira da saúde pública na cidade de São Paulo que, após implantar e dar andamento ao programa Saúde da Família por 25 anos em Itaquera, na zona leste, está de malas prontas para uma missão na África
A irmã canadense Monique Bourget, missionária pioneira da saúde pública na cidade de São Paulo que, após implantar e dar andamento ao programa Saúde da Família por 25 anos em Itaquera, na zona leste, está de malas prontas para uma missão na África - Danilo Verpa/Folhapress

Nesse período, viu avanços, mas também gargalos no atendimento na capital paulista. Diz que muitos pacientes ainda morrem de câncer por demora no acesso aos serviços especializados, e avalia que a área da oncologia na cidade de São Paulo precisa de melhor regulação para que os pacientes do SUS tenham acesso mais rápido aos serviços hospitalares de referência. 

“A questão da regulação é um nó no sistema. Eu recebo pacientes de fora do estado, mas os pacientes aqui do lado não têm acesso ao hospital. Porque a referência deles não é aqui. Isso custa para o sistema e para as famílias”, diz.

Formada pela Universidade McGill, Montreal (Canadá) e doutora pela USP, Bourget chegou ao Brasil no final de 1994 para atuar no Hospital Santa Marcelina, administrado pelas Irmãs Marcelinas, na linha de frente da saúde da família e nas diretorias técnica de dois hospitais.

Em Benin, a irmã seguirá atuando na saúde pública, especialmente na área maternoinfantil. A taxa de mortalidade infantil do país é de 52 óbitos por mil nascimentos— no Brasil, é de 12,4.

O que mais a chocou quando chegou a São Paulo?  
O primeiro choque foi em relação aos partos. O Canadá já estava muito avançado com os partos humanizados. Não fazia episiotomias [corte na região do períneo para ampliar o canal de parto] se não precisasse, as taxas de cesáreas eram baixas. 

Quando cheguei, o hospital era uma linha de produção, cerca de mil partos por mês, 100% de episiotomias, desumanizado ao máximo, com muita violência obstétrica e aquela máxima “gozou nove meses atrás, agora aguenta.”

E o que foi possível mudar? 
Em 1998, com as OSSs [organizações sociais], o Hospital do Itaim foi oferecido para as irmãs gerenciarem. Eu falei: ‘só aceito se eu puder mudar a obstetrícia’. Separamos o centro de parto que estava junto do centro cirúrgico e organizamos salas de parto.

Muito antes da lei [de humanização do parto], já deixávamos o acompanhante ficar junto [da parturiente], trabalhamos para reduzir as taxas de episiotomonia, tiramos a tricotomia [raspagem dos pelos pubianos].

Em 2005, vim para o hospital de ensino [Santa Marcelina]. E quis humanizar a morte também. Montamos os cuidados paliativos em 2008. Foi importante todo o trabalho com a equipe, inclusive com a saúde da família.

Precisamos falar sobre a morte, que a vida tem finitude e que é preciso cuidar desse momento, e  não deixar todo mundo morrer na UTI, como acontece hoje.

O curso de medicina do Santa Marcelina tem grande ênfase em medicina de família. Por que isso ainda é raridade?  
É uma mudança difícil. A própria USP não tem um departamento de medicina de família e comunidade.

Nossa proposta desde o início era de formar médicos para as necessidades do SUS, e a necessidade é o médico de família.

O modelo de ensino médico brasileiro é muito inspirado nos EUA, e não em países onde há uma atenção primária forte, como no Canadá. Lá o governo controla as vagas, 50% delas são para médicos de família.

Eles são os coordenadores dos cuidados. O usuário tem que passar por eles para ter acesso aos especialistas.

No Brasil os médicos especialistas são muito fortes. E a medicina privada também tem uma influência que desvirtua algumas questões.

O sistema não é claro para o médico que se forma. O ídolo dele é o médico especialista, a tecnologia. Ele vê o médico de família como o médico do postinho, sem prestígio. Talvez agora, com os planos de saúde investindo em atenção primária e levando os melhores médicos de família do SUS, isso pode mudar.

Quais os principais gargalos da saúde em São Paulo? 
O câncer se tornou a grande dificuldade nossa. Ainda temos muitos pacientes que morrem por falta de acesso. Estão em hospitais secundários e não conseguem chegar nos hospitais terciários de referência.

Tenho lutado muito com o município e o estado para regular melhor a oncologia, mas há problemas na interface entre município e estado para essa regulação.

Um paciente que está numa unidade básica nossa e tem uma suspeita de câncer vai para o hospital do IBCC [Instituto Brasileiro de Controle do Câncer, a 22 km do Hospital Santa Marcelina] e não para cá, que está do lado da casa dele, porque a referência deles não é aqui. Isso custa para o sistema, custa para as famílias. Quando ele tiver complicação, para onde vai? Vem para cá, mas eu não tenho o prontuário dele. Ele tem que se deslocar para fazer radioterapia longe de casa, sendo que eu tenho radioterapia aqui.

Essa questão da regulação é um nó no sistema. Eu recebo paciente de fora do estado, mas os pacientes que estão aqui do lado não têm acesso. Teve uma época que a gente conseguia captar o paciente mais precocemente, no posto. Agora, a nossa impressão é que o paciente demora muito para chegar.

E sobre tratamentos? Ainda é grande o abismo entre o SUS e os hospitais de referência na rede privada?  Estamos atrasados pelo menos 15 anos no tratamento do câncer. Há muitas novas drogas promissoras que poderíamos oferecer mas não conseguimos. O que nos salva um pouquinho é que a gente tem pesquisa clínica.

Conseguimos incluir nos protocolos pacientes que acabam tendo uma oportunidade com opções terapêuticas diferenciadas que não teriam se contassem apenas com os tratamentos convencionais que o SUS oferece. 

A irmã Monique Bourget e Giuseppina Ranieri
A irmã Monique Bourget e Giuseppina Ranieri - Danilo Verpa/Folhapress

Qual o principal avanço que viu nesse período na saúde? 
As redes de atenção psicossocial. No Itaim Paulista, nós temos Caps adulto, AD [álcool e drogas] e CAPs infantil, além do hospital que tem internação de saúde mental. Tem uma discussão de casos que se faz entre a atenção primária que é muito legal. Consegue-se conter os casos mais graves encaminhados das unidades, o hospital recebe melhor porque sabe que atenção primária fez o máximo que pode. Quando o paciente alta do hospital, ele volta para a atenção primária.

Como conter a alta taxa de evasão de médicos na zona leste?  
Tem que haver políticas mais rigorosas, pensar que daqui a dez anos teremos residência obrigatória para todos e 50% das vagas têm que ser de medicina de família e comunidade. A mudança curricular também precisa ser mais ousada.

Quem não fizer fecha a faculdade. Sou meio radical, mas às vezes é preciso. Funciona assim em outros lugares, no Canadá, por exemplo. Tem que ter políticas mais firmes.

Tem que ter uma parte de remuneração financeira, mas a questão da estrutura oferecida também é importante.

Por exemplo, na região de [Cidade] Tiradentes, com 250 mil habitantes, não tem um banco. A questão da violência também afasta, além das estrutura das próprias unidades. Tem que ter vaga de estacionamento, por exemplo.

O que gostaria de ter visto acontecer e não conseguiu?  
Muita coisa, mas acho que um hospice para adultos, um lugar onde as pessoas em cuidados paliativos pudessem passar seus últimos dias de forma mais digna. A família muitas vezes não tem condições de cuidar em casa.

Em países como o Canadá a enfermagem tem mais autonomia. Como avançar nisso?
Eu sou médica e digo tranquilamente que a enfermagem bem treinada e capacitada consegue tratar muito bem algumas condições básicas na atenção primária e até em hospitais com resultados similares aos dos médicos.

Você encarece o sistema e não valoriza esses outros profissionais que têm condições de dar uma grande resolutividade ao sistema. Mas tem questões de órgãos de classe que emperram isso. Não só dos médicos, mas da enfermagem também. Todo mundo mede pressão arterial em casa, mas os agentes comunitários, vinculados às equipes de saúde de família, não podem fazer isso porque o Coren [conselho de enfermagem] proíbe. É um custo para o sistema.

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