Descrição de chapéu Coronavírus

Em quarentena, 72% dos moradores de favelas têm padrão de vida rebaixado

Pesquisa inédita aponta que nessa população, de 13,6 milhões, 32% terão dificuldade para comprar comida

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São Paulo

Apenas uma semana dentro de casa, em quarentena contra a pandemia do novo coronavírus e sem renda, já é tempo o suficiente para 72% dos moradores de favelas no Brasil não conseguirem manter o baixo padrão de vida por não terem nenhum tipo de poupança.

Nessa população, formada por 13,6 milhões de pessoas, 32% (ou quase 1 em cada 3) terão dificuldades na compra de itens básicos de sobrevivência, como alimentos.

Os dados fazem parte de uma pesquisa inédita do Data Favela, que investigou o impacto da pandemia nas comunidades pobres e precárias do país.

Ao todo, 1.142 pessoas foram entrevistadas neste mês em 262 favelas de todas as regiões do país. A margem de erro é de 3 pontos percentuais, para mais ou para menos.

Os resultados do levantamento evidenciam que esse contingente, maior do que a população da cidade de São Paulo, por exemplo, enfrentará, para além da questão de saúde pública —agravada pelos ambientes domésticos minúsculos e pela falta de saneamento básico generalizada—, o desafio econômico da sobrevivência, com menos dinheiro ou mesmo sem ele.

No Brasil, até esta segunda-feira (23), o novo coronavírus havia causado 34 mortes e 1.891 casos de infecção confirmados, segundo o Ministério da Saúde.

Entre os mortos, 30 estão em São Paulo e 4 no Rio de Janeiro. Até o domingo (22), eram 25 mortos e 1.546 casos. A capital fluminense registrou sua primeira morte por Covid-19, a de uma mulher de 58 anos que tinha doenças crônicas.

A pesquisa do Data Favela apontou que 7 em cada 10 famílias afirmam já terem tido a renda diminuída desde o início da pandemia e das medidas preventivas do alastramento do vírus, e que 79% já começaram a cortar gastos por conta da crise provocada pela Covid -19.

Isso porque quase metade dos trabalhadores que vivem em favelas são autônomos (47%) e 8% são informais, ou seja, boa parte deles não pode contar com o suporte da legislação trabalhista nem com as políticas emergenciais pensadas para quem tem carteira assinada.

"Por mais que isso soe alarmista, esse quadro pode indicar uma situação de convulsão social num futuro próximo", avalia Renato Meirelles, fundador do Data Favela, uma parceria do Instituto Locomotiva e da Cufa (Central Única das Favelas).

São pessoas como a diarista Alda Pereira, 56, moradora da favela de Heliópolis, na zona sul de São Paulo, que desde esta segunda-feira (23) começou a sentir o efeito da crise causada pelo coronavírus. Na noite de domingo, ela recebeu a notícia de que estava dispensada da única casa em que fazia faxina, o que lhe rendia R$ 800 por mês.

“Foi um baque, fui demitida pelo ‘zap’. Fácil, né?”, diz ela que não conta com nenhum tipo de rede de proteção social do estado.

O que deve salvar a diarista durante as semanas de recolhimento quase compulsória será outro tipo de auxílio. Missionária da Assembleia de Deus, há 25 anos, ela mantém um trabalho de recolhimento de itens e distribuição de cestas básicas. É daí que virão os alimentos com que ela deve passar o próximo mês. “Estou crendo em Deus, que foi quem sempre me sustentou”, afirma.

Meirelles indica que pessoas nessas condições já têm dificuldades para pagar as contas do mês. Neste grupo, 84% projetam uma redução de renda por conta da pandemia.

"Cesta básica ajuda, mas é, de novo, o asfalto dizendo para a favela o que ela tem direito a consumir. Mais efetivo seria transferir renda diretamente para que os moradores de favelas comprassem o que precisam", afirma. "Se não houver ações efetivas, públicas e privadas, para garantir uma renda mínima, o adiamento de contas, garantindo provimento de produtos básicos, como alimentos, internet e produtos de limpeza, pode haver revolta das favelas."

"Até agora eu não ouvi a palavra favela sair da boca dos políticos que estão tratando da pandemia do coronavírus", critica Gilson Rodrigues, presidente da União de Moradores e Comerciantes de Paraisópolis, favela da zona sul da capital paulista, e articulador do G10, bloco de líderes e empreendedores sociais de favelas do país.

Seu grupo é uma das organizações ligadas às favelas que criaram listas de medidas para guiar os governantes sobre as necessidades dessas comunidades.

Para quem, mesmo sem as restrições de ganhos impostas pela pandemia, não tem condições de comprar produtos básicos de alimentação e de higiene, como sabonete, a saída é a implantação de um programa de renda mínima emergencial, defende Douglas Belchior, membro da coordenação nacional da Uneafro, entidade que luta pelos direitos de moradores das periferias e favelas.

Na sexta-feira (21), junto com outros movimentos de defesa da cidadania, a organização lançou um abaixo-assinado para pressionar o Legislativo a aprovar a medida em caráter de emergência. O objetivo é que 80 milhões de brasileiros sejam cobertos pelo programa enquanto durarem os efeitos da pandemia de coronavírus.

“A proposta é de renda básica de R$ 300 por pessoa, para todos que têm renda menor do que três salários mínimos”, afirma Belchior.

Até esta segunda-feira (23), o abaixo-assinado havia reunido pouco mais de 500 mil adesões. “É uma questão humanitária. Quando esse vírus tocar o chão das favelas e dos morros, veremos um genocídio no Brasil”, diz.

O próprio Bolsa Família seria uma opção, diz Gilson. "Nossa sugestão é que o governo utilize o sistema do Bolsa Família, ampliando o benefício para um salário mínimo por três meses e reabilitando o cartão de quem teve o benefício cortado recentemente", diz.

Nesta segunda, no entanto, ativistas que lutam pelos direitos dessa população se surpreenderam com a MP (medida provisória) editada pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido), que autorizava a suspensão do contrato de trabalho por até quatro meses. No início da tarde desta segunda, porém, ele voltou atrás em relação a um dos artigos da medida e disse que ele será revogado.

“O país precisa de um presidente que se comporte de acordo com o cargo que ocupa”, diz Belchior. “Mesmo os mais liberais compreendem que neste momento é preciso garantir renda para a população mais pobre.”

"O governo tem de fazer a parte dele, mas o presidente está até agora falando que é uma gripinha. E nós não temos tempo a perder com esse tipo de papo. A favela vai ter de começar a fazer as coisas por si e dar o exemplo", diz Gilson.

As ações para a população das favelas também estão passando por campanhas de arrecadação emergenciais e ações diretas da população. A Uneafro, por exemplo, reuniu R$ 50 mil em uma campanha de arrecadação para ajudar a manutenção de cerca de 300 famílias de favelas paulistanas. “É uma ajuda paliativa, de efeito temporário. Não podemos apenas esperar a ação do Estado porque a história nos mostra que ele não irá nos salvar, mas tirar nossas vidas”, afirma Belchior.

Em Paraisópolis, estão sendo criados comitês de cada bairro da favela, com presidentes de cada rua, que vão mapear a situação de cada 50 casas e farão a ponte com a união dos moradores, que vai fornecer marmitas para os mais necessitados, produzidas diariamente na sua cozinha comunitária. Para isso, criaram um canal online de arrecadação de recursos.

A Cufa elaborou uma lista de 14 recomendações para as favelas, que vão desde a distribuição de produtos de higiene até a criação e liberação de pontos de internet para que as pessoas possam se comunicar e acessar notícias sobre a pandemia.

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