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Muito mais que um panelaço: resistências sociais em tempos de coronavírus

Sem o fortalecimento dos coletivos, nosso horizonte de futuro será ainda mais restrito

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Breno Bringel
Latino América 21

À medida que a pandemia do coronavírus foi chegando ao Brasil, difundiu-se uma onda de múltiplos sentimentos entre a população. Agonia diante da saturação de acontecimentos, ansiedade perante a reclusão, frustração face à impotência e perplexidade ante o desconhecido.

As negligências e as desastrosas aparições públicas de um irresponsável presidente levaram, por sua vez, quase todo o país a uma sensação de desproteção e, inclusive, de raiva diante da irresponsabilidade política de um dos poucos mandatários no mundo que ousa contrariar abertamente as recomendações da Organização Mundial da Saúde e dos cientistas.

O medo ao vírus (e, em muitos casos, principalmente às suas consequências) é uma postura muito estendida, mas pior ainda é o negacionismo daqueles que continuam a minimizar a importância da pandemia.

Com argumentos como “a letalidade não é tão alta”, “a gripe mata mais” ou “já tivemos epidemias e pandemias piores”, Bolsonaro e seu séquito buscam, uma vez mais (assim como já o fizera com o holocausto e com a mudança climática), gerar controvérsias diante de fatos empiricamente e historicamente verificáveis sobre os quais existe um amplo consenso.

Seja por egoísmo, por convicções religiosas, por estratégia política ou por perturbações psíquicas de algum tipo, colocam desta vez em risco a vida de contingentes enormes da população, especialmente dos mais vulneráveis.

A despeito desta dramática situação causada por uma posição leviana e desumana diante da pandemia, as medidas de isolamento social e as duras políticas de restrição à mobilidade, embora necessárias para tentar conter a expansão do contágio, geram desdobramentos que precisam ser problematizados.

Isso precisa ser feito não pelos motivos expostos pela extrema direita e sim porque pode colocar em xeque nossas liberdades e a democracia, fortalecendo o autoritarismo já tão disseminado recentemente.

Mundo afora, o Estado interventor é reivindicado atualmente até pelos neoliberais, mas com ele chegam os militares nas ruas e a instalação de uma lógica bélica não somente contra o vírus, mas também contra alguns setores da sociedade.

Medidas de concentração de poder que vem sendo tomadas para combater a Covid-19 podem até ser necessárias para viabilizar o atendimento público da saúde e a “proteção” da população, porém há uma fronteira tênue entre isso e as derivas autoritárias.

Além do mais, é preciso lembrar que se o confinamento massivo aparece praticamente como a única alternativa hoje, isto deve-se, em grande medida, à política de privatização sem fim das últimas décadas. O neoliberalismo sucateou tanto a saúde que, em situações como esta, não temos capacidade de poder contar (nem sequer nos países europeus que antes disso se orgulhavam) com uma resposta pública à altura.

A quarentena é necessária, mas as políticas de exceção que começam a se estender são insustentáveis. Elas, aliás, não começaram com o coronavírus e, em alguns casos, poderão não desaparecer quando a pandemia tenha passado.

A militarização dos territórios e da vida já estava amplamente disseminada nos últimos anos, bem como a subsequente criação de novos inimigos –internos e externos–, dela derivada. Estamos diante da biopolítica em estado puro, com um grau de aceitação inédito da população. Antes, vigiavam e puniam. Agora, vigiam, punem e todos aplaudimos, encerrados em nossas casas.

Não nos enganemos: a vigilância permanente –das formas mais clássicas aos rastreamentos digitais e drones–, o controle e gestão dos big data, os novos dispositivos de reconhecimento facial e outras formas sofisticadas de controle social estão se aprofundando não somente para combater um vírus.

É preciso neutralizar os negacionistas e os oportunistas de plantão, mas também reconhecer uma dimensão trágica no confinamento: ele é socialmente necessário, mas politicamente perigoso. Isto porque não podemos isolar a excepcionalidade das medidas típicas deste momento político com a conturbada conjuntura que vivemos no Brasil, na América Latina e no mundo.

Pensemos, por exemplo, nas consequências do possível fechamento total de fronteiras e no estado de sítio em países como o Chile insurgente, a Bolívia com suas sequelas de um golpe ou a Venezuela já tão afetada com problemas de abastecimento interno.

Estamos somente no início de uma emergência sanitária, que também deve ser vista como uma emergência política e social, principalmente em sociedades tão desiguais como as latino-americanas.

Aprendizados políticos e resistências sociais em tempos de coronavírus

Este retrato sombrio da política em tempos de confinamento, felizmente, é uma imagem parcial. Para além do necessário e cada vez mais urgente #ForaBolsonaro, as resistências sociais estão sendo construídas, embora nem sempre sejam visíveis.

Há, de fato, uma série de aprendizados políticos que a atual conjuntura contribui a visibilizar e que constituem pilares fundamentais para construir um horizonte alternativo ao atual.

O primeiro deles é a importância da luta contra o antropocentrismo. Se a própria emergência do coronavírus é resultado de nossos desequilíbrios ecossistêmicos, a desaceleração da economia e pouco mais de uma semana de restrições de carros e aviões já serviram para que a maioria das capitais do mundo tenham visto suas estratosféricas taxas de poluição descender pela metade.

Isto nos lembra que sem luta contra a mudança climática, por alternativas a um desenvolvimento econômico depredador e pela justiça ambiental não haverá planeta nem vida que se sustente no futuro próximo.

Outro aprendizado societário da política em tempos de coronavírus é a centralidade dos cuidados na manutenção da vida e sua divisão absolutamente desigual em termos de gênero.

As feministas insistem nisso há muito tempo, mas agora o confinamento de boa parte da população mundial em suas casas, com crianças sem escolas e famílias inteiras sob o mesmo teto, explicita ainda mais esta escandalosa realidade.

Para que as tarefas do cuidado não sigam recaindo exclusivamente nos corpos das mulheres, a quarentena deveria ser vista como uma oportunidade ímpar de inflexão para que os homens pudessem se envolver ativamente em uma mudança radical de cenário, transformando a organização do trabalho em casa e fora dela.

Aos homens, a mensagem é clara: não vale começar agora e dizer que depois, após o fim da quarentena, “não há tempo”. Deve ser um caminho sem volta atrás. Somente assim poderemos construir, em termos práticos, sociedades mais igualitárias e alternativas antipatriarcais.

Um terceiro eixo de aprendizado é o da defesa e reconstrução dos serviços públicos. A luta contra o coronavírus tem visibilizado a importância da saúde pública, gratuita e universal, bem como a centralidade do financiamento público para pesquisas como uma das poucas amálgamas de nossas sociedades e formas de proteção das pessoas.

O momento aqui também é crítico: ou defendemos e reconstruímos a saúde pública (e os serviços públicos em geral), em um momento onde fica escancarada a sua importância, ou não haverá volta atrás. Trata-se mesmo de impor o bem-estar geral diante das reações do mercado e os operadores políticos da mercantilização.

Mas, para além da defesa do público, a crise atual também alerta para a importância da coletividade e da vida comunitária. Paradoxalmente, em tempos de profunda individualização da sociedade e em um momento onde o isolamento tem um caráter eminentemente individual, várias iniciativas sociais passam a valorizar e a defender a vida em comum.

Nos sentimos mais sozinhos e estamos mais vulneráveis aos diversos riscos em jogo, mas também multiplicou-se a empatia, a solidariedade e as redes de apoio mútuo.

Jovens que se disponibilizaram a comprar alimentos ou remédios para a população em situação de risco que não pode sair de casa; famílias que se dispõem a cuidar de crianças de outras famílias que precisam continuar trabalhando; iniciativas que promovem intercâmbios, a troca direta e o escambo quando as portas de muitos comércios fecham e as necessidades econômicas começam a apertar; coletivos que oferecem apoio psicológico, legal e trabalhista para aqueles que estão sofrendo de maneira mais direta as consequências da crise.

O fortalecimento dos laços sociais e dos vínculos comunitários, portanto, é outra das potencialidades de resistência em tempos de coronavírus.

Igualmente, outro aprendizado que emerge com a pandemia está relacionado à alimentação. Fazer a compra é um dos poucos motivos pelos quais muitos saímos de casa, em alguns casos assustados pela possibilidade (real ou imaginária) de desabastecimento de produtos básicos.

Os meios de comunicação reproduzem imagens de filas enormes nos supermercados diante de um alarme social provocado por compras compulsivas. O que pouco se diz é que o que realmente está em jogo é o direito à alimentação.

Há décadas os movimentos camponeses, redes alimentares e a própria Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura chamam nossa atenção para um modelo insustentável de alimentação, altamente concentrado em grandes superfícies de distribuição, reivindicando como alternativa a segurança e a soberania alimentar.

Em momentos críticos como o atual, mais do que nunca, começamos a pensar sobre o que e como se produz, se consume e se distribui. A disjuntiva é clara: ou apostamos todas as fichas em uma mudança de nossos hábitos, mas também do sistema alimentar como um todo (com cadeias locais e produtos sustentáveis e ecológicos, por cima das exigências dos supermercados, das grandes empresas e do mercado) ou estaremos destinados ao aprofundamento de uma catástrofe alimentar.

Diante da emergência provocada pela crise sanitária, a resistência social não se restringe a panelaços nas janelas e varandas. Eles são fundamentais, mas somente com eles Bolsonaro não cairá, nem tampouco mudaremos as bases fundamentais dos nossos problemas mais prementes.

Por isso, estas iniciativas diversas sinalizam para emergências sociais de uma transição necessária. Sem elas e o fortalecimento dos coletivos, das redes e dos movimentos que as sustentam (principalmente ecologista, feminista, juvenil, comunitário e campesino-indígena) nosso horizonte de futuro será ainda mais restrito.

Breno Bringel é editor, professor do IESP-UERJ, diretor da Associação Latino-americana de Sociologia e presidente do comitê de Movimentos Sociais da Associação Internacional de Sociologia

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