Descrição de chapéu Coronavírus

Primeiras mortes no RJ acendem alerta sobre unidades de saúde básica na capital

Funcionários improvisam escondendo álcool em gel e reaproveitando jaleco descartável

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Rio de Janeiro

“Antes dava para ir levando, mas agora vai fazer falta.” A frase, de um médico carioca que não quis se identificar, resume bem a situação de improviso da rede básica de saúde do Rio de Janeiro antes e depois da entrada do novo coronavírus na cidade, mais preocupante após as primeiras mortes no estado.

O governo estadual confirmou nesta quinta (19) duas mortes pela doença. As vítimas eram idosas, diabéticas e hipertensas e tiveram contato com pessoas contaminadas que haviam viajado para o exterior: uma mulher de 63 anos de Miguel Pereira, no interior, e um homem de 69 anos de Niterói.

Na capital, não tem sido raro na última semana ver a triagem de pacientes sendo feita no estacionamento das unidades, médicos reaproveitando jalecos descartáveis e funcionários escondendo ou comprando álcool em gel por conta própria.

Essas cenas foram relatadas por funcionários de seis unidades de atendimento primário da capital fluminense, como clínicas da família e centros municipais de saúde (CMS), que são a principal porta de entrada dos pacientes no SUS e o maior gargalo da saúde do Rio.

Os profissionais ouvidos aguardam o pico da doença com apreensão, muitos com a certeza de que ficarão doentes. Isso porque suas unidades sofrem com falta de estruturas, insumos e profissionais. A cidade tem 55 dos 65 casos confirmados no estado —o segundo maior número do país.

“No Rio, a maioria da atenção primária foi construída em contêineres, com refrigeração e sem janelas. O ideal seria termos locais amplamente ventilados e abertos”, diz o médico de família Carlos Vasconcelos, diretor de comunicação do sindicato dos médicos do município (Sinmed).

Quem sente mais, como sempre, são as favelas e os bairros mais pobres. Uma clínica da família na Rocinha (zona sul) está sem água há 20 dias, abastecida por caminhões-pipa. O motivo não se sabe, já que a equipe de manutenção foi cortada há alguns meses.

A unidade está tendo que se virar sem dez dos seus cem profissionais de saúde, que apresentaram sintomas compatíveis com os do coronavírus e estão afastados por duas semanas. Não há papel para secar as mãos, nem para imprimir receitas.

“Em uma unidade que vistoriei na semana passada na zona norte, o cloro acabou e as meninas da limpeza estavam misturando detergente com água. Mas o detergente também acabou naquele dia. Era um prédio de cinco andares, sem estoque, sem nada”, diz Alessandra Nascimento, subcoordenadora de saúde na Defensoria Pública do Rio de Janeiro.

Em Guaratiba, na zona oeste, a região mais afetada pela crise, os médicos do CMS estão usando um capote por turno (veste esterilizada que cobre o corpo), apesar da indicação de trocá-lo a cada atendimento de sintoma respiratório. O mesmo ocorre na clínica da família de Manguinhos, comunidade da zona norte.

Máscaras cirúrgicas, máscaras N95 (que filtram partículas) e álcool em gel também estão em falta em Guaratiba. Um dos funcionários chegou a comprar, com o próprio dinheiro, um galão do produto, que está sendo distribuído entre as equipes e os pacientes na entrada.

No CMS Heitor Beltrão, na Tijuca (zona norte), não se via álcool em gel e tampouco pessoas de máscaras nesta terça (17). No subsolo, uma grande pia de metal com diversas torneiras para lavar as mãos não dispunha de sabão, sabonetes ou detergente.

Nesta semana, as unidades de atenção primária mudaram seu esquema de atendimento, seguindo um protocolo da Secretaria Municipal de Saúde. Consultas agendadas e visitas domiciliares foram suspensas, sendo mantidas apenas em casos como pré-natal de alto risco e tuberculose.

Quando o paciente chega ao local, é recebido por um funcionário na porta. Se tiver sintomas respiratórios, vai para a triagem, feita em área externa quando há. Só então, caso necessário, é atendido nos consultórios dentro da clínica, muitos deles sem janelas.

Pessoas com síndrome gripal leve são orientadas a ficarem isoladas em casa —o que é considerado “piada” por um médico, levando em conta a realidade das favelas, onde muitas famílias dormem juntas em um mesmo cômodo.

Esses casos sintomáticos são monitorados pela equipe local por telefone, de dois em dois dias. Os únicos que têm sido testados para o vírus são os pacientes transferidos para hospitais e internados, conforme orientação do Ministério da Saúde.

“A falta de testes é o que está angustiando mais. Na prática, um número muito grande de gente gripada está chegando e não temos como dar uma resposta além do isolamento. Tem profissionais adoecendo sem acesso ao teste, com dificuldade de reposição”, diz Carlos Vasconcelos, do sindicato.

A crise do coronavírus ameaça uma rede básica que já vinha se deteriorando após uma reestruturação do prefeito Marcelo Crivella (Republicanos). Desde o fim de 2018, ele extinguiu 184 equipes de saúde da família, segundo a Defensoria, argumentando que o sistema foi expandido de forma desordenada por seu antecessor, Eduardo Paes (DEM).

Em fevereiro, Crivella decidiu rescindir o contrato com uma organização social que geria grande parte das unidades, passando-as para a empresa municipal RioSaúde. Nesse processo, nem todos os funcionários demitidos foram recontratados, o que fez com que a Defensoria e a Promotoria fluminense entrassem na Justiça.

“Houve uma deterioração do serviço desde 2015, com um agravamento desde 2018, e hoje o quadro é preocupante. Tem uma vacância enorme de profissionais há um mês, e agora ainda tem o afastamento de funcionários diante da pandemia”, diz a defensora Alessandra Nascimento.

Procurada, a Secretaria Municipal de Saúde afirmou que a empresa RioSaúde já preencheu 3.195 do total de 3.765 postos de trabalho vagos e que as contratações seguem sendo realizadas em ritmo acelerado. Nesta quinta, Crivella anunciou que estão sendo convocados mais ​200 enfermeiros e 80 técnicos.

Sobre a falta de testes para o coronavírus, a secretária municipal Ana Beatriz Busch declarou que aguarda um posicionamento do Ministério da Saúde e que, assim que houver disponibilidade de exames, vai dedicá-los aos funcionários da saúde para que possam voltar logo ao trabalho em caso de resultado negativo.

Sobre a falta de insumos, a pasta respondeu que publicou processos no Diário Oficial para compra emergencial de estoques, mas negou a falta de itens. “Todos os equipamentos de proteção individual, como óculos, capotes, luvas e máscaras, estão disponíveis nas unidades e devem ser usados pelos profissionais.”

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