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Leonardo Miana e Mirian Dal Ben

A ciência tem que prevalecer na avaliação da cloroquina contra o novo coronavírus

Mesmo entre os médicos não há consenso sobre a droga; estudos científicos bem conduzidos devem acabar com esse impasse

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A bioética ensina que os cuidados com cada paciente devem ser pautados por dois princípios fundamentais: a beneficência e a não maleficência. À primeira vista pode parecer que os dois princípios representam a mesma coisa. Não representam. Podemos ter um remédio muito eficaz contra determinada doença, mas cuja agressão é tão grande ao organismo que leva o paciente a uma situação pior do que a que ele se encontrava anteriormente.

O enfrentamento à Covid-19 já foi comparado a uma guerra. Inclusive tendo sido proposto que não faz sentido aguardar a publicação de avaliações científicas antes de salvar vidas.

Esta é uma mensagem perigosa para a população em geral, pois deixa dúvidas sobre a real necessidade de estudos científicos.

A medicina de guerra trouxe inúmeros avanços. Entre “não fazer nada” e “tentar salvar vidas” é óbvio optarmos pela segunda opção. Mas qual paciente vai realmente morrer pela Covid-19? E qual pode morrer por um tratamento inadequado?

O ideal é que, para ser aprovado, um medicamento passe por avaliação de segurança e eficácia. Há testes sobre efeitos colaterais e, depois de o fármaco se mostrar eficaz no laboratório, ele é comparado com um placebo (medicação sem efeito clínico) para avaliar sua eficácia no ser humano.

O pesquisador que acredita na ação de uma droga tende a achar que sua intervenção está sendo eficaz. Para reduzir a interferência de percepções pessoais nos resultados, são utilizados métodos científicos baseados em comparações objetivas entre grupos sorteados (receber ou não a medicação) e no uso de “cegamento” dos pesquisadores por medicação placebo. Os resultados são avaliados por meio de cálculos estatísticos para demonstrar que o experimento foi de fato um sucesso, e não obra do acaso.

Após liberado para uso, continuam a ser avaliadas segurança e eficácia. Existem vários relatos de medicações que estavam sendo usadas havia anos em determinada doença e que a ciência, perseverando na busca pela verdade, identificou que não melhoravam os resultados e poderiam até fazer mais mal.

Um bom exemplo é o fármaco de nome comercial Xigris, que durante quase uma década foi considerado uma revolução contra infecções graves. Muitos médicos usaram esse remédio na certeza de que estavam curando o paciente, mas estudos científicos provaram que ele fazia mais mal do que bem.

Blisters com cloroquina, que está sendo testada contra o novo coronavírus
Blisters com cloroquina, que está sendo testada contra o novo coronavírus - AFP

O uso da cloroquina ou da hidroxicloroquina no tratamento da Covid-19 vem monopolizando as discussões. Mesmo entre os médicos não há consenso. Quem está com a razão? O que devemos fazer?

Precisamos de estudos científicos bem conduzidos para saber. Em uma doença da qual pelo menos 85% dos doentes se curam sem tratamento específico e sem comprometimentos maiores, fica impossível avaliar o real benefício de uma medicação sem um estudo clínico.

Claro que não estamos falando aqui de estudos que passam por todas as fases e demoram décadas, pois estamos vivendo uma situação limítrofe. Pessoas estão morrendo e ainda não há uma medicação eficaz contra o novo coronavírus. Estamos falando de estudos que estão sendo esperados para as próximas semanas ou meses.

Precisamos de ao menos um estudo com número razoável de pacientes, com uma metodologia adequada mostrando que há beneficência, sem causar maleficência. Aí sim devemos pensar em ampliar os horizontes desta terapêutica.

Por enquanto, temos poucos estudos comparativos. Todos com um número pequeno de pacientes. Em um deles, pesquisadores franceses perceberam bons resultados em pacientes que receberam a hidroxicloroquina associada à azitromicina. Em situações convencionais, essa pesquisa teria enormes dificuldades para ser aceita por revista científica importante. E, de fato, a Sociedade Internacional de Terapia Antimicrobiana publicou uma advertência sobre as falhas metodológicas do trabalho francês.

No entanto, devido às atuais circunstâncias, todo o mundo foi impactado pela publicação, e o uso dessas drogas foi liberado para estudos clínicos.

Dois estudos foram publicados em seguida, também com poucos pacientes e com resultados conflitantes: um identificou melhora mais rápida, o outro não observou diferença.

Como a medicação é liberada para outras situações, seu perfil de segurança é bem conhecido. Arritmias cardíacas causadas pela cloroquina e pela hidroxicloroquina podem ocorrer. São complicações pouco frequentes, mas que podem ser potencializadas se o uso indiscriminado for estimulado.

Estamos muito longe do consenso. Mais longe ainda de sabermos em quais situações ou quando indicar esses fármacos. Outros tratamentos promissores vêm sendo estudados: anticoagulantes, plasma de convalescentes, antivirais, interferon.

Enquanto estudos científicos robustos não trazem a resposta, devemos lançar mão da prudência. Definida por Aristóteles como “Phronesis, é a virtude que facilita escolher os meios certos para atingir o melhor resultado, priorizando assim o melhor interesse do paciente, deixando de lado interesses outros que não a saúde da população.

Não podemos esquecer ainda da valorização de estratégias de tratamento que se mostraram bem-sucedidas em países com baixas taxas de letalidade: garantir acesso ao diagnóstico, a leitos de terapia intensiva e aos equipamentos de proteção individual.

Leonardo Miana

Cirurgião Cardiovascular do Incor (Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP), doutor em cirurgia torácica e cardiovascular pela USP e professor colaborador da Faculdade de Medicina da USP

Mirian Dal Ben

Médica infectologista do Hospital Sírio-Libanês, doutora em infectologia pela USP

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