Banco de dados com leituras de febre diárias mostra eficácia de isolamento contra a Covid-19

Novos dados oferecem evidências, em tempo real, de que as restrições podem estar funcionando nos EUA

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Donald G. McNeil Jr.
Nova York | The New York Times

Medidas severas, como as ordens para ficar em casa e o fechamento de restaurantes, estão contribuindo para a queda rápida do número de pessoas com febre —um sintoma da maioria das infecções por coronavírus— registrado em vários pontos dos Estados Unidos, de acordo com novos dados intrigantes produzidos por uma empresa de tecnologia médica.

Pelo menos 248 milhões de americanos em 29 Estados foram avisados para não saírem de casa. Parecia quase impossível para as autoridades de saúde pública saber se essa e outras medidas foram eficazes na desaceleração do coronavírus.

Mas os novos dados oferecem evidências, em tempo real, de que as rígidas restrições de distanciamento social podem estar funcionando, potencialmente reduzindo a superlotação hospitalar e a taxa de mortalidade, segundo especialistas.

A empresa Kinsa Health, que produz termômetros conectados à internet, criou primeiro um mapa nacional dos níveis de febre em 22 de março e conseguiu identificar a tendência em um dia. Desde então, os dados dos departamentos de saúde dos estados de Nova York e Washington confirmaram a conclusão, deixando claro que o distanciamento social está salvando vidas.

A tendência se tornou tão óbvia que, no domingo (29), o presidente Donald Trump prorrogou até o final de abril sua recomendação de que os americanos fiquem em isolamento. Trump pretendia suspender as restrições na Páscoa e enviar os americanos de volta ao trabalho.

"Essa teria sido a pior surpresa possível da Páscoa", disse o doutor Peter J. Hotez, reitor da Escola Nacional de Medicina Tropical da Faculdade de Medicina Baylor, em Houston, acrescentando que as previsões da Kinsa pareciam se basear em "tecnologia muito robusta".

Os termômetros da Kinsa enviam as leituras de temperatura dos usuários para um banco de dados centralizado, permitindo que a empresa rastreie os casos de febre no país.

Os usuários de termômetros Kinsa podem digitar outros sintomas em um aplicativo para celular depois de medir a temperatura. O aplicativo oferece conselhos básicos sobre se eles devem procurar atendimento médico.

A Kinsa tem mais de um milhão de termômetros em circulação e tem recebido até 162 mil leituras diárias de temperatura desde que o Covid-19 começou a se espalhar pelos EUA.

A empresa normalmente usa esses dados para rastrear a propagação da gripe comum. Desde 2018, quando tinha mais de 500 mil termômetros distribuídos, suas previsões estiveram habitualmente entre duas e três semanas à frente das dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC na sigla em inglês), que reúnem dados sobre sintomas de pacientes em consultórios e hospitais.

Para identificar grupos de infecções por coronavírus, a Kinsa recentemente adaptou seu software para detectar picos de "febre atípica", que não se correlacionam aos padrões históricos de gripe e provavelmente são atribuíveis ao coronavírus.

Funcionário checa temperatura de passageira em aeroporto de Porto Rico
Funcionário checa temperatura de passageira em aeroporto de Porto Rico - Reuters

Até as 12h de quarta-feira (1º), o mapa ao vivo da empresa mostrava que os casos de febre se mantinham constantes ou caíam em quase todo o país, com duas exceções importantes.

Uma delas estava em uma ampla faixa do Novo México, cujo governador havia emitido ordens de isolamento em casa apenas na véspera, e em municípios adjacentes no sul do Colorado.

A segunda ficava em um círculo de paróquias da Louisiana em torno de Nova Orleans, mas entre 150 e 250 quilômetros da cidade. Presumivelmente, isso foi causado pela disseminação local da explosão de infecções em Nova Orleans, que as autoridades acreditam ter sido desencadeada pela aglomeração durante o Carnaval.

Na manhã de sexta, os casos de febre em todos os municípios do país estavam em tendência de queda, representada em quatro tons de azul no mapa.

A febre caía com especial rapidez na região oeste, de Utah à Califórnia e de Washington ao Arizona; em muitos municípios da região, o número de pessoas que relataram febre alta caiu quase 20%. Os números também estavam diminuindo rapidamente no Maine (nordeste do país).

As áreas do Novo México e do Colorado que estavam levemente "quentes" na quarta-feira apareciam em azul-claro, indicando que estavam esfriando. O mesmo acontecia com os municípios da Louisiana.

Na manhã de segunda, mais de três quartos do país estavam em azul-escuro. Outra exibição da tendência coletiva da febre nacional, que atingira um pico em 17 de março, havia caído tanto que estava realmente abaixo da faixa que mostrava as tendências históricas da febre da gripe --o que significava que o bloqueio reduziu não apenas a transmissão do Covid-19, mas também a da gripe comum.

"Estou muito impressionado com isso", disse o doutor William Schaffner, especialista em medicina preventiva na Universidade Vanderbilt. "Parece uma maneira de provar que o distanciamento social funciona. Mas mostra que são necessárias medidas muito restritivas para fazer uma diferença real", acrescentou.

Em algumas cidades atingidas, a Kinsa também enviou ao The New York Times dados de febre marcados em um cronograma das restrições promulgadas por prefeitos ou governadores.

Schaffner observou que esses gráficos mostravam que simplesmente declarar estado de emergência ou limitar o tamanho das reuniões públicas não afetava o número de pessoas que relatavam febre.
Mas fechar restaurantes e bares e pedir às pessoas para ficarem em casa produziram resultados drásticos nas três cidades.

Por exemplo, em Manhattan, os relatos de febre aumentaram constantemente no início de março, apesar da declaração de emergência em 7 de março e da ordem no dia 12 de que as reuniões públicas se limitassem a 500 pessoas.

A virada começou em 16 de março, quando as escolas foram fechadas. Bares e restaurantes foram fechados no dia seguinte, e uma ordem de permanência em casa entrou em vigor em 20 de março. No dia 23, as novas febres em Manhattan estavam abaixo dos níveis de 1º de março.

Na sexta-feira passada (27), os dados do estado de Nova York mostravam a mesma tendência que as leituras de febre da Kinsa haviam detectado cinco dias antes.

O estado acompanha as taxas de hospitalização, não a febre. Tantos pacientes estavam sendo admitidos nos hospitais da cidade de Nova York, disse o governador Andrew Cuomo, que até 20 de março as taxas de hospitalização estavam dobrando aproximadamente a cada dois dias.

Na terça (31), a taxa de hospitalização levou quatro dias para dobrar. Isso é aproximadamente o que as leituras de febre previam, disse Nita Nehru, porta-voz da empresa.

As hospitalizações ocorrem vários dias após o aparecimento de sintomas como febre. "Os casos contados agora tinham febre há cinco a dez dias", disse ela.

A desaceleração das novas internações hospitalares "sugere que nossas medidas de controle de densidade podem estar funcionando", disse Cuomo na quarta-feira (1).

"As pessoas dizem que esses requisitos, sem restaurantes, sem trabalhadores não essenciais, são onerosos", disse Cuomo. "E são mesmo. Mas também são eficazes e necessários. As evidências sugerem que eles retardaram nossas hospitalizações, e isso é tudo."

Vendo os dados da Kinsa, o doutor Howard Zucker, comissário de saúde do Estado de Nova York, chamou de "um ótimo exemplo de uma tecnologia capaz de mostrar o que estamos experimentando --e é consistente com nossos dados".

Na sexta-feira, a Universidade da Califórnia em San Francisco disse que seus hospitais não estavam enfrentando um grande aumento de pacientes, e deu crédito às rigorosas ordens de confinamento impostas pelo prefeito London Breed em 16 de março.

No domingo, o Estado de Washington também relatou uma tendência de queda após a imposição de restrições, com base em dados de mortes, testes de coronavírus e informações sobre os movimentos de pessoas nos aplicativos do Facebook em seus celulares.

"As pessoas precisam saber que seus sacrifícios estão ajudando", disse Inder Singh, fundador da Kinsa. "Recebi mensagens de texto ou telefonemas de amigos que disseram: 'Inder, isso parece exagerado. Estou sentado em casa sozinho, não conheço ninguém que está doente, por que estou fazendo isso?'"

O rastreamento da febre pela Kinsa no condado de Miami-Dade, na Flórida, mostrou uma tendência ainda mais acentuada, e a empresa tentou dar o alarme.

No início de março, as praias e os bares da Flórida estavam cheios de estudantes curtindo as férias da primavera, apesar dos avisos sobre os riscos de aglomerações. Nos mapas da Kinsa que normalmente procuram tendências de gripe, os níveis de febre estavam subindo.

Singh tentou divulgar a notícia, mas a empresa de San Francisco é relativamente obscura e quase ninguém prestou atenção.

"Foi tão frustrante", disse Nehru, porta-voz da companhia. "Durante três dias, a partir de 19 de março, Inder telefonou para o governo local da Flórida, ao Tampa Bay Times e outros jornais. O governo não fez absolutamente nada."

"Além disso, estávamos sendo rejeitados nas redes sociais", disse ela. "As pessoas diziam: 'Os testes não mostram isso; seus dados estão errados?' e 'Será que vocês estavam vendendo mais termômetros na Flórida?'"

Em 12 de março, o estado de emergência havia sido declarado, mas, segundo os dados da Kinsa, a febre continuava aumentando. O fechamento das escolas locais em 16 de março teve pouco efeito.

Mas no dia 18 os bares e restaurantes de Miami foram fechados e, em dois dias, os relatos de febre começaram a cair acentuadamente, segundo os dados da Kinsa.

O dano pode ter sido feito. Agora, a Flórida relata que os casos de coronavírus estão aumentando e seus hospitais aguardam uma superlotação.

A tendência de queda da febre não significa que os casos ou hospitalizações também cairão imediatamente, apontou Nehru.

Os casos confirmados continuarão aumentando durante dias, porque as pessoas nem sempre fazem o teste do Covid-19 no mesmo dia em que sentem febre. Além disso, muitos Estados estão fazendo mais testes todos os dias.

O CDC (Centro de Controle de Doenças dos EUA) se recusou a comentar sempre que foi indagado sobre a empresa Kinsa.

Singh disse que procurou o CDC para que usasse seus dados como parte da vigilância da gripe pelo órgão, mas a direção insistiu que nesse caso eles cedessem os direitos aos dados, e ele recusou.

O doutor Schaffner, consultor do CDC na vigilância da gripe, disse que ficou desapontado ao saber disso e que analisaria o assunto.

O aperfeiçoamento feito pela Kinsa em 22 de março foi adicionar "tendências" --um mapa mostrando se todas as febres estavam aumentando, diminuindo ou se mantendo constantes.

"Finalmente, as pessoas estão pedindo nossos dados", disse Singh na segunda-feira. "Estamos conversando com seis Estados sobre a distribuição de mais termômetros. As pessoas entendem o valor disso agora."

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves

Donald G. McNeil Jr. é repórter científico e cobre epidemias e doenças dos pobres do mundo. Ele entrou no Times em 1976 e já reportou de 60 países.  

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