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Cientistas sugerem infectar pessoas saudáveis com coronavírus para acelerar vacinas

Pandemia oferece a tentação de driblar regras científicas para obter resultados logo

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São Paulo

A busca por soluções contra a Covid-19 desafia cientistas a pensar fora da caixa atrás de inovação, mas também oferece a tentação de driblar regras científicas de ética em pesquisa estabelecidas após séculos de experiência.

“Saídas pouco ortodoxas são possibilidades reais dentro de um contexto de emergência extrema e de situações que nunca vivenciamos antes. Soluções diferentes, que venham de fora do senso comum, vão surgir”, afirma o microbiologista Flávio Guimarães da Fonseca, professor da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).

Uma situação limite que já começa a ser cogitada por cientistas são os chamados estudos de desafio humano, nos quais pessoas saudáveis são infectadas com uma determinada doença para receber uma vacina ou tratamento ainda não aprovado.

Pessoa com roupas de proteção manuseia equipamentos de laboratório
Pesquisador trabalha em substância candidata à vacina contra a Covid-19 na Universidade de Pittsburgh, nos Estados Unidos - Divulgação

No experimento, os participantes ficam isolados em uma estrutura hospitalar e são monitorados a todo instante. Assim, eles não podem transmitir a doença para o resto da população e, quando complicações aparecem, eles podem contar com uma intervenção rápida.

Em um artigo publicado nesta semana na revista científica The Journal of Infectious Diseases, pesquisadores sugeriram um modelo de desafio humano para acelerar a aprovação de uma vacina contra o novo coronavírus.

Nir Eyal, professor de bioética na Universidade Rutgers, em Nova Jersey (EUA), e autor principal do artigo, disse em entrevista à revista Nature que a terceira e última fase do processo para aprovação de uma nova vacina é a mais demorada, e justamente a que pode ser encurtada com um desafio humano.

Essa última fase é o momento da pesquisa com uma vacina que mais se aproxima da vida real. Milhares ou centenas de milhares de voluntários são recrutados para o teste. Parte deles recebe a vacina e parte ganha um placebo. Essas pessoas ficam soltas entre a população, expostas à infecção, e, em até dois anos, os pesquisadores verificam se a vacina deu proteção.

“Em testes clínicos, não enfocamos somente a redução de riscos para os participantes. Enfocamos o balanço razoável entre os riscos e a importância do resultado para a comunidade. Nesse caso [da Covid-19], vacinas podem ser o único caminho para as sociedades saírem da estagnação econômica e da alta mortalidade”, disse Eyal.

Segundo Ricardo Palacios, diretor de ensaios clínicos do Instituto Butantan, estudos do tipo são conduzidos há algum tempo para comprovar a eficácia de tratamentos contra malária e gripe, por exemplo.

Palacios lembra que o risco é baixo quando se trata de doenças que conhecemos há mais tempo e sobre as quais existe mais conhecimento científico disponível. “No caso da malária, pessoas que se submetem ao desafio e têm algum problema mais grave causado pela infecção são tratadas imediatamente. A situação é controlada porque já existe um tratamento específico”, diz.

“Os desafios humanos são armas poderosas, mas também muito delicadas. Antes de fazer um estudo desse tipo, é preciso verificar se o conhecimento não pode ser obtido de outra forma”, afirma.

Fonseca, da UFMG, diz que as quarentenas obrigatórias podem ser um problema para um estudo clínico tradicional amplo. “As pessoas já estão em isolamento social por causa da doença, para evitar exposição, isso pode fazer com que os resultados demorem ainda mais”. Segundo ele, isso daria até alguma vantagem para o desafio humano.

A pressão da sociedade e de governos por uma resposta mais rápida à pandemia podem também favorecer o formato de pesquisa. Foi assim que explodiram pelo mundo estudos com a cloroquina, remédio usado contra malária e lúpus, entre outras doenças, que teve resultados promissores em pesquisas preliminares para tratar a Covid-19.

Na visão dos cientistas, os limites éticos da pesquisa científica ainda não foram cruzados. “Estamos flexibilizando regras para permitir que esses estudos sejam feitos”, afirma Fonseca.

“A comunidade científica não abriu mão do rigor. A resposta dos pesquisadores à pressão foi a criação muito rápida de vários estudos ao mesmo tempo. Foi uma via rápida”, acrescenta Palácios, do Instituto Butantan.

O cientista de vacinas Akira Homma, assessor científico sênior do Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos Bio-Manguinhos, da Fiocruz, afirma que o mesmo rigor deve ser mantido na produção e seleção de uma vacina contra a Covid-19.

Para Homma, o maior entrave a um desafio humano agora está na falta de um tratamento que garanta a segurança dos participantes do estudo.

“A chave para termos uma pesquisa assim é, antes de tudo, termos um medicamento com eficácia comprovada para tratar os casos graves da doença. Nenhum comitê de ética aprovaria um desafio humano sem esse remédio”, afirma o cientista.

Para que uma vacina fique pronta são necessários até 20 anos, entre pesquisa e procedimentos para aprovação. Em alguns casos, usando atalhos, o produto pode ser aprovado em um período que vai de 18 a 24 meses, diz Homma.

“Com os estudos que estão sendo feitos com medicamentos que já estão no mercado, a expectativa é de ter o remédio para tratamento da doença antes da vacina” conclui Homma.

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