Descrição de chapéu Coronavírus

Hospitais montados para Covid-19 não dão garantias caso trabalhador adoeça

Prática é comum em meio médico, onde profissionais trabalham até sem contrato

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

Na linha de frente do combate ao novo coronavírus, profissionais como médicos e enfermeiros têm sido contratados para atuar em hospitais de campanha em São Paulo sem garantias caso sejam eles mesmos infectados.

Os contratos, emergenciais e temporários, são feitos de diferentes maneiras —via pessoa jurídica, cooperativas ou até pagamento direto sem contrato—, deixando esses trabalhadores sem a segurança de que sequer recebam salários caso sejam afastados, por exemplo.

Prefeituras e governos montaram hospitais emergenciais para atender pacientes infectados pelo novo vírus. Em São Paulo, a gestão Bruno Covas (PSDB) abriu dois deles.

Um deles tem 200 leitos no estádio do Pacaembu, administrado pelo Hospital Albert Einstein, com 520 profissionais. Outro, maior, no Anhembi, terá 1.800 leitos, administrado pelas empresas Iabas e SPDM, com 2.100 trabalhadores.

Outras cidades fizeram o mesmo, como é o caso de Cotia, na Grande SP, que abriu hospital com 50 leitos.

Os contratos precários são comuns no meio médico há anos, sobretudo desde que prefeituras e governos passaram a terceirizar a administração de hospitais públicos para organizações sociais.

Citando dados do estudo Demografia Médica, do Conselho Federal de Medicina, o professor Mário Scheffer, da USP, diz que cerca de 56% dos médicos no país, pela forma como foram contratados, "teriam hoje dificuldades de assegurar direitos trabalhistas em função de doença ocupacional, no caso a infecção pelo coronavírus".

"Com o coronavírus, esse problema fica escancarado", afirma o anestesista Victor Vilela Dourado, diretor no Simesp (Sindicato de Médicos de SP). "Em muitos lugares, são esses profissionais, sem vínculo, que são colocados na linha de frente, para não causarem complicações financeiras à empresa", afirma.

Na epidemia da Sars (Síndrome Respiratória Aguda Grave), que atingiu parte do planeta entre 2002 e 2003 e também era causada por um tipo de coronavírus, 21% dos infectados eram trabalhadores da saúde, segundo a Organização Mundial da Saúde.

A reportagem teve acesso a negociações e contratos de trabalho para a atuação nos hospitais de campanha.

Em uma das conversas, um recrutador da empresa M Doctor, contratada pela Prefeitura de Cotia para contratar outros profissionais, oferece duas opções de contrato a um médico: via pessoa jurídica ou no chamado caixa dois, em que o profissional recebe sem assinar nenhum papel (prática muito comum, segundo relatos feitos à reportagem).

O médico pergunta se haveria algum seguro caso o profissional seja contaminado. "Por esse meio de contratação, nenhum", responde.

No hospital do Anhembi, a contratação de funcionários para atuar na parte que será administrada pela Iabas também ocorreu via uma outra empresa, chamada OGS Saúde, que também negou aos profissionais que haja benefício caso eles sejam infectados.

O contrato elaborado por eles se encaixa na categoria de trabalhador intermitente. Embora deixem os profissionais que atuam na linha de frente desamparados, contratar um profissional por esse meio ou via pessoa jurídica não é ilegal.

A reportagem conversou com trabalhadores que vão atuar nesses novos hospitais, que pediram anonimato para não terem seus empregos ameaçados.

"Como os atendimentos sem urgência e emergência foram cancelados, minha renda caiu dois terços. Então fui atrás desses plantões no Anhembi", disse uma médica à Folha. "Mas o contrato é muito fraco. Se você adoecer, é por sua conta e risco."

"Estamos expostos a uma carga viral muito alta e só sabemos que, se precisarmos parar de trabalhar, não vamos receber. Não é só uma insegurança financeira, mas insegurança de trabalho. Vai ter EPI para todo mundo? Vai ter insumo, estrutura, protocolo de atendimento? Não temos garantia de nada disso. Estou há cinco dias tentando falar com os superiores, mas não conseguiram nem me indicar com quem falar", afirma.

Uma outra profissional reclama da mesma situação. "Parece que se aproveitam da pandemia para dizer: 'Vocês vão cobrar isso agora?'. E colocam a cobrança de que devemos ser heróis, sacerdotes. Mas é insalubre", diz.

A medida provisória 927, assinada pelo presidente Jair Bolsonaro no fim de março, que dispõe sobre as medidas trabalhistas durante o estado de calamidade pública, diz que "os casos de contaminação pelo coronavírus (Covid-19) não serão considerados ocupacionais [ou seja, não estariam sujeitos a um afastamento com auxílio-doença, por exemplo], exceto mediante comprovação do nexo causal".

Essa comprovação poderia ser feita com um resultado positivo do exame de infecção para a Covid-19. O problema é que os testes têm sido feitos somente em casos graves, e um profissional que tem outros sintomas e precisa ser afastado para não espalhar a doença não seria testado.

O Seesp (sindicato dos enfermeiros de SP) afirmou à Folha que acionou as administradoras dos hospitais para pedir mais informações sobre as contratações, e também o Ministério Público do Trabalho para garantir equipamentos de proteção individual.

Além disso, vão ingressar com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal contra a medida provisória do governo federal.

A Prefeitura de São Paulo e a Iabas (uma das que administram o hospital do Anhembi) não responderam aos questionamentos da reportagem. A OGS não retornou o pedido de contato da Folha.

A SPDM (também do Anhembi) afirmou que segue a legislação trabalhista e que tem protocolos para garantir a idoneidade de empresas quarteirizadas que fazem a contratação de médicos, "reforçando que é delas a responsabilidade legal com seus respectivos colaboradores, conforme previsto em contrato".

O Hospital Albert Eintein, que administra o hospital do Pacaembu, afirmou que os profissionais contratados passaram por treinamentos de seguranças e que possuem acesso às Clínicas Einstein de atenção primária, em que pode ser avaliado qualquer tipo de sintoma respiratório, além de serem feitos exames laboratoriais e atendimento médico, caso necessário.

"Uma vez dado o diagnóstico de Covid-19, o profissional é afastado e monitorado remotamente via telefone e telemedicina, além de receber suporte psicossocial e de autocuidado e recebe, ainda, os materiais necessários como máscara e álcool em gel para o isolamento social adequado até o retorno às atividades."

O secretário de Justiça de Cotia, Vitor Marques, afirmou que "em razão da urgência e necessidade, contratamos, após cumprir todas as exigências jurídicas, empresa especializada" para contratar os médicos, e que a prefeitura "atuará dentro de suas prerrogativas contratuais fiscalizando para que o atendimento aos cidadãos seja eficiente e de absoluta qualidade, e que também os profissionais contratados para prestar o serviço à empresa e ao município sejam valorizados e estejam protegidos".

Os advogados da M Doctor disseram que as contratações foram lícitas, nos termos da lei, e que os médicos contratados "sabem que o contrato é para medidas emergenciais para o coronavírus. Não há nenhum tipo de omissão nesse sentido".

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.