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Natália Pasternak e Paulo Nussenzveig

Medicina não é mercado de ilusões

É preocupante que indivíduos com credenciais científicas defendam que os métodos da ciência sejam abandonados

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Natalia Pasternak Paulo Nussenzveig

Diante da pandemia do novo coronavírus, o mundo aguarda respostas da ciência que permitam salvar vidas e a retomada de nossas atividades normais. Em todo o planeta, cientistas têm devotado esforços em busca de medicamentos e vacinas.

É importante compreender, no entanto, que a ciência não opera por mágica, em que soluções brotariam como coelhos saindo de cartolas. No caso da medicina, devemos lembrar que muitas drogas que parecem inicialmente promissoras, na maioria das vezes, não funcionam em testes clínicos.

Não é a primeira vez que a cloroquina aparece como candidata para tratamento de doenças causadas por vírus. Ela já foi testada para dengue, influenza, Aids, zika, chikungunya, nipah vírus, e para a própria Sars, parente próxima da Covid-19. Apesar de sempre apresentar bons resultados em cultura de células, os testes em animais ou humanos decepcionaram, nesses casos. Para Sars foi testada em camundongos, mas não teve efeito. Para chikungnuya, algo inesperado: aumentou a carga viral e exacerbou os sintomas da doença em macacos.

Quando usada contra vírus em laboratório, a cloroquina parece atrapalhar a formação do endossomo, uma espécie de “pacote” que transporta o vírus para dentro da célula. O endossomo, para se formar, depende de um pH baixo (ácido). A cloroquina e a hidroxicloroquina aumentam o pH, impedindo a formação do endossomo e bloqueando a entrada do vírus na célula.

Mas o vírus Sars-CoV-2, causador da Covid-19, tem uma outra entrada, muito comum em células do trato respiratório: uma proteína de membrana que não precisa de endossomo. E essa porta de entrada é a preferida do vírus. A cloroquina não ajudaria muito aqui.

Já a ideia de combinar a hidroxicloroquina com o antibiótico azitromicina surgiu do trabalho do grupo francês liderado por Didier Raoult. A própria revista que publicou o estudo já declarou, após análise posterior, que seu padrão de qualidade é baixo, e que foram excluídos dados importantes que alteravam o resultado.

Os perigos, por outro lado, não são desprezíveis. Tanto hidroxicloroquina como azitromicina aumentam o risco de cardiopatias. Pesquisadores na França e na Suécia já estão deixando de usar a combinação, por causa deste efeito colateral. Resultados preliminares divulgados pela Fiocruz em Manaus, com cloroquina apenas, relataram o mesmo problema.

Nada se sabe também sobre interações da hidroxicloroquina com outros remédios, no corpo de uma pessoa infectada com o Sars-CoV-2. Trabalho realizado em camundongos, por exemplo, mostrou interação com medicamento para diabetes, que matou 30% das cobaias. A leitura das mais importantes revistas científicas indica que não há, no momento, qualquer evidência confiável de eficácia da hidroxicloroquina ou cloroquina no combate à Covid-19.

Em nossas atividades de divulgação da ciência, temos insistido que o que a torna útil para a sociedade é o processo, o método pelo qual buscamos as respostas aos desafios da natureza. É preocupante que indivíduos com credenciais científicas venham defender em público que os métodos da ciência (como ensaios clínicos controlados) sejam abandonados e que protocolos de uso amplo de hidroxicloroquina sejam universalizados desde os estágios iniciais dos sintomas. Ao fazerem isso, estão renegando as próprias credenciais.

Em emergências, muitas vezes ficamos desnorteados e buscamos conforto em qualquer coisa que pareça ajudar. No filme Apollo 13, no momento da explosão no espaço, o chefe da Sala de Controle diz: "trabalhem para resolver o problema, não piorem a situação com meras adivinhações".

Natalia Pasternak

Presidente do Instituto Questão de Ciência e coautora do livro Ciência no Cotidiano, da editora Contexto

Paulo A. Nussenzveig

Professor do Instituto de Física da USP

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