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'Ninguém olha pelos profissionais da enfermagem', diz intensivista

Com ao menos 137 mortes e mais 4.100 contaminados por Covid-19, área sofre com hostilidades e corte de salários

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São Paulo

Maior força de trabalho na saúde, com mais de 2,3 milhões de pessoas, a enfermagem brasileira já teve ao menos 137 profissionais mortos pela Covid-19 e mais de 4.100 contaminados.

As mortes representam 34% do total mundial e levaram o Brasil a liderar o ranking, segundo o Conselho Internacional de Enfermagem.

Para a enfermeira intensivista Renata Pietro, 44, presidente do departamento de enfermagem da Amib (Associação de Medicina Intensiva Brasileira), o país não valoriza esses profissionais que hoje estão na linha de frente da crise sanitária.

“Não temos ninguém olhando pelos profissionais da enfermagem. Estamos numa guerra, defendendo arduamente o sistema de saúde, mas as tropas estão abandonadas no front, os soldados desarmados, mal pagos”, diz.

A enfermeira intensivista Renata Pietro, 44, presidente do departamento de enfermagem da Amib (Associação de Medicina Intensiva Brasileira)
A enfermeira intensivista Renata Pietro, 44, presidente do departamento de enfermagem da Amib (Associação de Medicina Intensiva Brasileira) - Arquivo Pessoal

Doutora em ciências da saúde, ela afirma que os profissionais estão fadigados com a sobrecarga de trabalho e abalados emocionalmente com a morte de colegas e o risco de contaminação, além de com os ataques sofridos.

Agora, o corte de salários e as demissões que já acontecem em hospitais privados chegam como fatores a mais de angústia e estresse, segundo ela. “É um risco também para a qualidade da assistência prestada por eles.”

A enfermagem concentra muitos mortos e contaminados pela Covid-19. O que explica isso? O cenário é muito complexo. Já tivemos problemas com a falta de EPIs [equipamentos de proteção individual]. Agora, há dificuldade de treinamento para esses profissionais. Os dados mundiais mostram que o maior risco é na hora da desparamentação.

É o momento em que o profissional já está muito cansado com sobrecarga de trabalho e pode se contaminar. Os serviços de ponta têm orientado para que haja alguém para ajudar esse profissional na hora da desparamentação, para reduzir as chances de contágio.

Sem contar que, quando a gente tem baixa desses profissionais extremamente qualificados, vamos perder mais pacientes também. Também falta testagem para esses profissionais. Um percentual muito pequeno está fazendo testes, o que os deixa mais expostos.

E, claro, o vírus não está só no hospital, ele está circulando. Quando temos pessoas não acreditando que o isolamento social seja importante, que protege vidas, a gente, que está na linha de frente, continuará pagando o preço.

Por conta da crise, hospitais privados já demitem e cortam salários, e o impacto maior é na enfermagem. É um desafio a mais? Sim, é um desafio não só para os orçamentos desses profissionais, que já lidam com baixos salários, mas também para a saúde mental. Eles já estão extremamente abalados, tendo que sair de suas casas, correndo o risco de serem contaminados. É um risco também para a qualidade da assistência prestada por eles.

Os gestores devem avaliar as medidas com muita prudência e equilíbrio. A gente não pode permitir que o argumento do desemprego, da crise da Covid, sirva de suporte e suposta justificativa para restringir direitos. Será que esse é o momento de reduzir salários, sem acordo coletivo, de um pessoal que está na linha de frente de uma pandemia?

A enfermagem também vem sendo vítima de atos de hostilidades. Falta valorização desses profissionais? O que aconteceu no dia 12 de maio, no Dia Mundial da Enfermagem, deixou muito evidente o quanto o país não olha para esses profissionais que estão no front, prestando cuidados.

No mínimo, esperávamos que o presidente Jair Bolsonaro tivesse feito uma menção de agradecimento a essas pessoas. Nenhuma palavra. Até o Donald Trump [presidente dos EUA], um dia antes da data, chamou representantes de profissionais da enfermagem na Casa Branca e os parabenizou.

No Brasil, o único que veio a público, numa live no dia 13 de maio, nos parabenizar e nos apoiar foi o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta. No mesmo dia, recebemos uma cartinha da duquesa de Cambridge, Kate Middleton, dizendo que admira o esfoço e o trabalho das equipes de enfermagem no Brasil. Até a duquesa consegue reconhecer os esforços dos nossos profissionais, e o presidente da República não consegue ir para a TV e falar: 'Boa noite, enfermagem, obrigado, parabéns'.

No governo, hoje, não temos ninguém olhando por esses profissionais da enfermagem. Estamos numa guerra, estamos defendendo arduamente o sistema, mas as tropas estão abandonadas na linha de frente, os soldados desarmados, mal pagos. Ninguém se recusou a ir para o front.

Isso vem a se somar a hostilidades como os ataques ocorrido durante um protesto pacífico em Brasília [que homenageava os mortos e pedia isolamento social]. No Maranhão, houve relatos de motoristas de táxi se negando a transportá-los. A sensação é que a população nem sabe direito o que esses profissionais fazem e a importância deles.

O que faz, por exemplo, o enfermeiro dentro da UTI? A triagem e o cuidar dentro da terapia intensiva dependem desses profissionais. Ele ajuda em todo o manejo dos doentes críticos. Desde o cuidado de pausar a dieta, observar se a cabeceira está elevada, até fazer toda a interface entre todos os profissionais, médicos, fisioterapeutas, nutricionistas, fonoaudiólogos.

A ventilação mecânica é um ato médico, mas ele precisa de ajuda e suporte do enfermeiro muito bem treinado. O médico trata, o fisioterapeuta tem o olhar para a ventilação e a mobilização desse paciente.
Mas o enfermeiro intensivista tem que ter um olhar aguçado frente a toda a assistência do doente crítico.

Quando colocamos o paciente em posição de prona [de barriga para baixo] para melhorar a capacidade ventilatória do pulmão, isso exige uma tarefa milimétrica e delicada dos profissionais. Não é qualquer um que consegue isso. Tem que ter cuidado com o tubo que está na boca, a sonda que muitas vezes está no nariz, com a pele para não ter lesão. É esse profissional que avisa ao médico que o paciente está mudando de oxigenação.

Por isso, a OMS [Organização Mundial da Saúde], o NHS [sistema de saúde inglês] têm um olhar diferenciado para a enfermagem. Esse profissional bem treinado, bem capacitado, muda o desfecho do paciente crítico.

E não é um profissional que se forma rápido, certo? Não, um enfermeiro de terapia intensiva bem formado leva no mínimo mais dois anos de atuação dentro da UTI. A gente não forma esse profissional com curso EAD [educação a distância] e em plataforma do Ministério da Saúde. Esse cara para ser bem formado em cuidados críticos leva tempo.

Mas hoje terapia intensiva não é cadeira obrigatória dentro da grade curricular dos cursos de enfermagem. Essa pandemia mostra que vamos ter que resenhar isso, que tem que ser obrigatória. Não basta os alunos só olharem como funcionam uma UTI, vamos precisar colocá-los ali dentro, ter habilidade mínima de cuidado técnico e científico desses pacientes.

Qual é a fotografia do momento da enfermagem? Estamos acumulando as angústias dos cidadãos comuns. Estamos mais expostos ao risco de contaminação e ainda lidando com a falta de EPIs, em alguns locais, com sobrecarga de trabalho, com a morte de colegas.

Estudos feitos em outras tragédias apontam que esses profissionais apresentam níveis intensos de fadiga e, posteriormente, desenvolvem quadros de depressão.

Se a gente não cuidar desses profissionais, podemos perdê-los, ou para a Covid ou para o estresse, a fadiga, o burnout, que muitos já enfrentam. Quando é que o Estado maior vai olhar para essas pessoas e pensar como acolhê-las?

Ainda persiste a falta de EPIs? Em alguns lugares, sim. Na capital de São Paulo, estamos bem abastecidos. A preocupação é com a questão dos leitos de UTI, estamos com 90% de ocupação da cidade. Na terapia intensiva, a sobrecarga do trabalho e as jornadas têm sido exaustivas. O manejo desse doente Covid crítico exige muito da capacidade física, mental e emocional dos profissionais da UTI.

Ele satura muito rápido, a hemodinâmica altera muito rápido. É todo mundo grave ao mesmo tempo. Você investe, investe e, quando você começa a perder muita gente jovem, colegas, isso mexe muito com o emocional das pessoas.

Esses profissionais são fundamentais, padrão ouro do cuidado, não podemos perdê-los. Não adianta fazer o governo federal ter projeto contando com recém-formados porque essas pessoas não vão dar conta.

Esses profissionais têm recebido algum suporte emocional? Varia muito. Em instituições acreditadas, esse suporte já faz parte da rotina. Mas quando a gente olha o sistema como um todo, por exemplo, aquele hospital de campanha no Maracanã, com profissionais dormindo no chão, relatos de que água chega para um grupo e o outro não, é de uma crueldade sem fim.

Nessa pandemia, várias empresas privadas também têm oferecido serviços online de suporte emocional. Mas isso tinha que ser política pública, estar dentro da cultura dos hospitais.

Como a enfermagem avalia esse vácuo no Ministério da Saúde e essa polêmica toda em torno da cloroquina? O [ex-ministro da Saúde] Nelson Teich saiu mais condecorado do que entrou. Saiu justamente porque a ciência não conseguiu prevalecer. Entre os profissionais, ninguém admirava o cara, mas ele foi ponta firme em fazer valer as evidências científica sobre a cloroquina. Como você pode defender um remédio em que 33% dos doentes fazem arritmias? Morrem em casa vendo TV? É um absurdo.

Há dois projetos da enfermagem, o piso nacional e a jornada de 30 horas, que não avançam no Congresso. Qual a razão da dificuldade? A pauta da jornada de 30 horas é um projeto que está parado no Congresso há 20 anos. Não dá quórum porque há uma bancada na defesa dos interesses políticos e econômicos dos hospitais privados.

Quando se fala que a jornada tem que ser de 30 horas, e não de 40, é preciso dar folga para esse cara e contratar uma pessoa a mais. A OMS preconiza que profissionais que lidam com situações de estresse, pressão e trabalham com a vida e morte necessitam que a jornada de trabalho aconteça por 30 horas semanais.

O médico já tem a sua jornada regulamentada, fisioterapeuta tem, o psicólogo tem. E o maior contingente da saúde, que são os profissionais da enfermagem, não tem.

O cara que só pensa no lucro, que não quer dar um descanso maior a esse profissional, não pensa que pode possibilitar uma menor risco de erro, uma prática assistencial mais segura para a população.

Com o piso é um pouco diferente. Como os estados têm um quantitativo, um é mais rico e o outro mais pobre, não consegue colocar um piso salarial. Mas sobre a jornada é mais factível.

O que essa pandemia traz como aprendizado? Com saúde, a gente não se brinca. Por mais que os interesses do mercado tenham levado a essa quantidade de cursos de graduação em enfermagem a distância, a pandemia mostra que precisamos de profissionais bem formados, capacitados.

Esses cursos online são o fim da picada. Não tem como. Se você não ver, não apalpar uma veia, você nunca vai saber cuidar. A enfermagem precisa ser reconhecida e valorizada. e a formação qualificada é fundamental e urgente.


Renata Pietro, 44, enfermeira intensivista há mais de 20 anos, preside o departamento de enfermagem da Amib (Associação de Medicina Intensivista Brasileira). Doutora em ciências da saúde, é fundadora da Associação Brasileira de Enfermagem em Terapia Intensiva e embaixadora da Federação Mundial de Enfermagem em Cuidados Críticos. É presidente licenciada do Coren (Conselho Regional de Enfermagem) e diretora de enfermagem licenciada na Unidade de Terapia intensiva do Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo

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