Tratar casos leves de coronavírus pode ajudar a salvar a todos

Pouco está sendo feito para achar terapias profiláticas, que são eficazes na maioria das doenças virais agudas

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Richard Malley Marc Lipsitch
The New York Times

O presidente Trump disse recentemente que estava tomando o antipalúdico hidroxicloroquina como profilático contra a Covid-19, a doença provocada pelo Sars-CoV-2. Isso apesar de ele não ter tido teste positivo para a doença, pelo que se sabe, nem apresentar quaisquer sintomas dela —e apesar das crescentes evidências científicas de que o medicamento não traz benefícios para pacientes com Covid-19 e pode ser perigoso para algumas pessoas.

É difícil entender a decisão de Trump. Mas ela ressalta a necessidade urgente de dedicar mais atenção e recursos a medicamentos que possam prevenir a Covid-19 ou impedir o agravamento de casos leves da doença.

Até agora, foi publicada cerca de uma dúzia de estudos sobre tratamentos para a Covid-19. Todos foram realizados com pacientes hospitalizados, normalmente com sintomas graves.

Alguns dos resultados são preocupantes: nem a hidroxicloroquina nem uma combinação de lopinavir e ritonavir, dois medicamentos usados contra o HIV/Aids, parecem ter eficácia.

Outros ensaios têm tido alguns resultados promissores. O remdesivir, droga desenvolvida para tratar a hepatite C e o ebola, parece ter acelerado a recuperação de pacientes com Covid-19 adiantada, segundo um estudo não publicado apoiado pelo National Institute of Allergy and Infectious Diseases.

É claro que há muitos motivos práticos válidos para concentrar a atenção sobre os pacientes mais doentes —sempre, mas especialmente em uma pandemia como esta. Os hospitais ficam sobrecarregados com casos de emergência; o total de mortos aumenta; medidas de saúde pública como lockdowns e distanciamento físico compulsório, impostas para proteger os grupos mais vulneráveis à contaminação, causam enormes transtornos sociais e econômicos. Todos esses fatores impõem que os doentes mais graves recebam a assistência mais urgente.

Mas pensamos que um esforço paralelo é igualmente urgente: realizar ensaios clínicos para identificar medicamentos que possam evitar que as pessoas sejam infectadas pelo Sars-CoV-2 em primeiro lugar ou evitar que os casos leves de Covid-19 se agravem.

Essa abordagem recebeu pouca atenção até agora, embora virtualmente todas as infecções virais agudas até o momento tenham sido tratadas com mais êxito com medicamentos dados como profilaxia (antes do surgimento de sintomas ou mesmo antes da exposição ao vírus) ou logo após o aparecimento dos sintomas (quando eles tendem a ser leves).

Não existe profilaxia ou tratamento comprovado para a fase inicial de qualquer dos outros coronavírus —para o Sars, o Mers ou os coronavírus sazonais. Mas podemos tirar lições úteis do melhor modo de atacar outras infecções virais agudas, sendo a maior delas que é aconselhável agir prontamente, antes da infecção ou assim que possível depois que ela ocorre.

Há duas abordagens principais. A primeira envolve administrar anticorpos, ou tirados de pacientes convalescentes ou produzidos em laboratório. O timing da intervenção é crucial.

Por exemplo, no caso da infecção provocada pelo vírus sincicial respiratório (VSR), doença pulmonar grave que afeta crianças pequenas, administrar anticorpos às pessoas antes da exposição ao vírus as protege de contrair a doença. Mas os anticorpos dados a crianças que já estão com insuficiência respiratória decorrente do VSR não reduzem a duração da ventilação mecânica ou o tempo de recuperação.

Algo semelhante ocorre com a catapora, também conhecida como varicela: anticorpos são recomendados para evitar o desenvolvimento de sintomas em pacientes expostos ao vírus nos quatro dias anteriores. No caso da raiva, anticorpos são eficazes quando administrados logo após o contato com um animal raivoso, mas não trazem benefício palpável depois que a doença se instalou.

Uma análise de dados combinados de estudos feitos durante a pandemia de influenza de 1918-19 sugere que a transfusão de plasma de pacientes recuperados da doença em outros pacientes pode salvar estes outros da morte, mas apenas se realizada numa fase muito inicial da doença.

Outro tipo de tratamento de infecções virais agudas envolve drogas que matam o vírus no corpo do paciente ou impedem sua replicação. Também esses normalmente só são eficazes se usados na fase inicial das doenças, que geralmente é leve.

No caso da influenza, a droga oseltamivir (Tamiflu) é licenciada para uso profilático, para prevenir a transmissão, e para tratamento nas primeiras 48 horas de sintomas; o baloxavir já se mostrou benéfico nos primeiros dias após o início da doença. O tratamento antiviral do herpes zóster precisa ser iniciado aos primeiros sinais da doença.

Fato mais notável ainda: quando uma pessoa contrai catapora —geralmente na infância, já que a maioria dos adultos tem imunidade, ou por terem tido a doença quando crianças ou por terem sido vacinados—, administrar a droga antiviral aciclovir a outras crianças que vivem na mesma residência antes de apresentarem qualquer sinal da doença lhes confere proteção virtualmente total contra ela. Melhor ainda –elas desenvolvem anticorpos contra o vírus e se tornam imunes.

Pode parecer difícil de entender por que as terapias antivirais são mais eficazes em pacientes assintomáticos ou apenas levemente doentes, e não nos doentes mais graves.

Uma explicação provável é que nos estágios avançados de uma doença é a resposta imunológica do paciente à infecção que causa boa parte da inflamação e dano a seu corpo. Chegado a esse ponto, livrar-se do vírus é uma tratamento menos eficaz do que teria sido em fase mais inicial.

Parece que isso também se aplica à Covid-19. Segundo um estudo feito com 41 pacientes em Wuhan, China, inflamação aguda na fase posterior da doença seria uma das principais causas de morte dos pacientes. Essa é uma razão que impulsiona as pesquisas atuais sobre os efeitos de drogas que possam ajudar a atenuar a resposta imunológica de doentes graves com Covid-19.

Apesar desses precedentes, porém, pouco está sendo feito para identificar e testar possíveis terapias profiláticas ou de estágio inicial. Segundo nossa revisão dos ensaios clínicos atuais de tratamentos profiláticos, a grande maioria, infelizmente, é dedicada à hidroxicloroquina ou à cloroquina.

Estão sendo testados muito poucos tratamentos para pacientes com sintomas da fase inicial da doença, segundo o Fundo para o Tratamento Precoce da Covid-19 (CETF- Covid-19 Early Treatment Fund), criado pelo empreendedor tech Steven Kirsch “para financiar tratamentos clínicos ambulatoriais de medicamentos redirecionados”.

O CETF identificou quatro antivirais como sendo próprios para serem testados com pacientes de Covid-19 e está financiando parcialmente ensaios clínicos de dois deles (além da hidroxicloroquina).

Um ensaio, realizado em vários locais pelo mundo, vai testar a eficácia contra a Covid do peginterferon lambda, medicamento que também está sendo considerado contra hepatite D.

O outro ensaio, na Dinamarca, é do mesilato de camostat, normalmente usado para tratar inflamação do esôfago ou pâncreas.

O Instituto Nacional de Saúde americano (NIH) anunciou na semana passada um novo ensaio com 2.000 adultos com Covid-19 para avaliar se uma combinação de hidroxicloquina e do antibiótico azitromicina pode evitar a hospitalização ou morte.

Vamos agora às ressalvas. Métodos terapêuticos e preventivos que funcionaram para outros vírus podem não ter efeito contra o Sars-CoV-2: é um patógeno novo, e os muitos sintomas que a Covid-19 pode provocar em adultos e crianças ainda estão sendo descobertos.

Avaliar tratamentos inovadores em ensaios clínicos é muito complicado no meio de uma pandemia, e, dada a dificuldade, a decisão de concentrar esforços e recursos limitados sobre os pacientes mais graves parece razoável.

Mas acreditamos que os ensaios de drogas profiláticas e terapêuticas para casos assintomáticos ou leves de Covid-19 têm uma chance maior de sucesso do que administrar drogas a pacientes criticamente doentes, além de trazer benefícios potenciais de longo prazo maiores a um número maior de pessoas.

Já foi fartamente documentado que pacientes assintomáticos infectados com o Sars-CoV-2 podem transmitir o vírus, muitas vezes sem seu conhecimento. Uma estratégia preventiva que não apenas impedisse o vírus de causar a doença mas também barrasse sua transmissão poderia limitar a necessidade de quarentenas, lockdowns e medidas onerosas de distanciamento físico.

Tratar imediatamente os pacientes em estágio inicial também poderia evitar que sua condição fosse de leve para grave, reduzindo o número de pessoas internadas em UTIs. Isso, por sua vez, poderia reduzir a pressão total imposta à infraestrutura médica e permitir que os hospitais cuidassem com mais eficácia dos doentes críticos de Covid-19 ou outras enfermidades.

Tratar pessoas com sintomas leves ou nenhum sintoma de Covid-19 beneficiaria a todos. É por isso que identificar e testar drogas que possam fazê-lo deve virar uma prioridade absoluta.


Richard Malley

Médico especialista em doenças infecciosas e professor de pediatria na Harvard Medical School

Marc Lipsitch

Professor dos departamentos de Epidemiologia e Imunologia e de Doenças Infecciosas na Harvard T.H. Chan School of Public Health, onde dirige o Centro de Dinâmicas de Doenças Transmissíveis.

Tradução de Clara Allain

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