Missão com venezuelanos em RR aproximou bilionário e ministro interino da Saúde

Wizard disse que número de mortos pela Covid era menor; neste domingo, desistiu de ingressar na pasta

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Brasília

O que um general que comandou o 20º Batalhão Logístico Paraquedista e Depósito de Munições do Rio de Janeiro e um empresário bilionário que faz parte da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias têm em comum?

Até março, a resposta seria uma missão em Boa Vista, Roraima, momento que levou o empresário Carlos Wizard Martins, ex-dono da escola de inglês que mantém seu nome e hoje à frente de marcas como Pizza Hut e KFC, a conhecer o general Eduardo Pazuello.

Por dois anos, ambos fizeram parte da Operação Acolhida, voltada a dar apoio a imigrantes venezuelanos que chegam ao Brasil. O primeiro, como voluntário. O segundo, como coordenador.

A resposta seria acompanhada também pela nomeação de Wizard, como é chamado, como novo secretário de Ciência de Tecnologia do Ministério da Saúde, a convite de Pazuello, hoje ministro interino --ambos, porém, sem experiência prévia na saúde.

Na noite deste domingo (7), porém, Wizard recuou e disse que não aceitará o convite. A desistência se deu após a polêmica causada ao ter afirmado, em entrevista ao jornal O Globo, que o governo iria recalcular os mortos pela Covid-19, engrossando as indicações da gestão de Jair Bolsonaro no sentido da omissão e manipulação de informações sobre a pandemia.

À Folha, o empresário já havia recuado em parte da declaração, dizendo que a ideia não era "desterrar mortos", mas olhar para frente, embora tenha mantido a afirmação de que, para ele, os dados podem estar inflados --apesar de especialistas da área citarem o contrário, a subnotificação.​

Antes da desistência, o empresário disse que estava aceitando a missão como uma extensão de sua "missão de filantropia, uma missão humanitária". "Assim que terminar a Covid o ministro volta a Manaus, e eu a Campinas", afirma.

Foi de lá que Wizard saiu com a mulher em direção a Boa Vista, em agosto de 2018.

Membros da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, Wizard e a esposa pensavam em maneiras de dar apoio ao filho, que é autista e estava prestes a fazer 18 anos, quando a tradição mórmon costuma indicar uma missão voluntária.

Foi aí que veio o convite da igreja para que o casal fosse ajudar em Roraima. Toparam.

A experiência é descrita no livro "Meu Maior Empreendimento", que Wizard lançou na internet neste ano para arrecadar recursos em apoio a pacientes e ações contra o coronavírus.

No texto, ao mesmo tempo que tece elogios a militares, Wizard não poupa críticas à logística inicial da operação.

"Os venezuelanos estavam pelas praças, e o Exército só tinha um voo por mês [para levar a outras cidades]. Era uma situação muito lenta, burocrática, e fiquei angustiado", reclama.

"Comecei a ficar inconformado e a criar meus próximos meios para solucionar o problema, como buscar o transporte pelas companhias aéreas e contato com as igrejas."

Com contatos entre as empresas, Wizard obteve apoio da Azul, Gol e Latam para que refugiados que estavam em abrigos fossem direcionados a outras cidades em assentos vagos nos voos.

Ele calcula ter auxiliado, com o grupo, 12 mil venezuelanos no processo de interiorização. "Todo dia era uma emoção muito forte. Ia pessoalmente no aeroporto."

O empresário Carlos Wizard Martins, ao lado da ministra Damares Alves
O empresário Carlos Wizard Martins, ao lado da ministra Damares Alves - Carlos Wizard Martins no Facebook

Foi nessa rotina que o empresário conheceu Pazuello, descrito no livro como alguém "altamente qualificado" e "militar o tempo suficiente para conseguir ter inteligência emocional para lidar com as situações mais complexas".

A vida em Roraima também aproximou Wizard de outros militares, de quem diz ter ganhado pouco a pouco carta-branca para tomar ações, e da rotina do governo em Brasília.

Um plano para acelerar a operação, por exemplo, foi apresentado por ele ao então ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni. Reuniões também foram feitas com a ministra Damares Alves e a primeira-dama, Michelle Bolsonaro.

O primeiro contato com o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) ocorreu na Marcha dos Prefeitos, em 2019.

"Antes o meu ciclo empresarial era 100% focado em São Paulo, e raras vezes ia até Brasília. A partir daí, ter contato com o Planalto passou a ser costumeiro", diz ele, que também encontrou Bolsonaro em março, pouco antes de ele seguir em comitiva aos Estados Unidos --aquela mesma em que boa parte do governo foi infectada pela Covid-19.

"Foi um dia enigmático porque ele viajou e logo depois avisaram que o secretário [de Comunicação, Fabio Wajngarten] estava com Covid", diz. "Não vou esquecer desse dia tão cedo", ri.

A preocupação, afirma, só passou quando soube que Wajngarten estava em voo separado.

Cerca de um mês depois, o temor da Covid deu lugar a decisões sobre a doença. Inicialmente, Wizard foi chamado por Pazuello para auxiliar o ministério como consultor.

Apesar de citar a área de ciência e tecnologia como a mesma de sua formação na Universidade Brigham Young, instituição ligada a igreja a que é vinculado, Wizard teve a carreira voltada ao mundo empresarial.

A primeira experiência foi na escola de inglês, vendida em 2013, com outras do setor, por R$ 2 bilhões. Hoje, está à frente do grupo Sforza, que diz ter deixado com os filhos.

Antes de desistir de integrar o governo, ele havia dito que sua participação na pasta ocorreria por 90 dias, com possibilidade de prorrogação. "Mas, sinceramente, acho que vai até o fim do ano, porque a pandemia não vai terminar tão rápido."

"China, Itália, Espanha tiveram uma primeira onda e caiu, e depois tiveram uma segunda onda. No Brasil nem chegamos ainda no ponto de cair", diz ele, para quem a vacina é expectativa para mudar o cenário.

Até que isso ocorra, Wizard dizia ter como meta a oferta de um kit de tratamento precoce contra a Covid-19, o qual seria composto por cloroquina e outros quatro medicamentos.

A medida, como mostrou a Folha na terça-feira (2), seguiria o exemplo de Porto Feliz (SP), que passou a ser citada por ele nas redes sociais como exemplo de lugar com "500 casos e zero óbito". Balanço da cidade, no entanto, apontava 73 casos e 3 mortes até sexta-feira (5).

Também dizia que, na pasta, manteria a ideia de aumentar a oferta da cloroquina para uso profilático. Porém, não há medicamentos com eficácia comprovada para a Covid.

Wizard minimiza. "Você não precisa de todo o trabalho científico de eletricidade para saber que vai levar choque se colocar o dedo numa tomada", compara.

E quanto ao princípio da precaução em saúde? "Faz 70 anos que o mundo todo consome cloroquina. Por que nunca ninguém se opôs? Porque funciona." O remédio, porém, é comprovado para malária, artrite e lupus, não para Covid.

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