Descrição de chapéu Coronavírus

No Brasil, apenas 0,05% de grupos de pesquisa se dedicam a desvendar influenza

Nos EUA, foram gastos R$ 4,5 bi em 2019; cientistas buscam vacina universal contra influenza, que mata 500 mil ao ano

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São Paulo

Todo ano o vírus influenza, causador da gripe, mata 500 mil pessoas, mais ou menos o que a Covid-19 deve matar apenas neste primeiro semestre de 2020, de acordo com os registros oficiais.

Olhando dessa forma, o novo coronavírus pode parecer ao menos duas vezes mais preocupante, mas a questão esconde nuances.

A primeira é que, se considerarmos o somatório desde o começo do último século, os mortos por gripe serão dezenas de vezes mais numerosos do que aqueles por Covid-19. A segunda nuance é que essa miríade de mortes anuais por gripe se dá apesar da disponibilidade de vacinas.

Ao analisar o cenário, surgem algumas questões:

1) Será que era possível ter feito mais para tentar conter tantas mortes por gripe?

2) Será que, se tivéssemos nos preparado melhor para enfrentar a gripe, teríamos aprendido o suficiente para que menos pessoas morressem de Covid-19?

Em 2015, Bill Gates, ex-magnata da tecnologia e filantropo disse em um evento (TED Talks) que o maior risco para humanidade não era mais o de uma guerra nuclear, mas o surgimento de um vírus capaz de se espalhar pelo mundo e provocar milhões de mortes.

Ele não era o único a alertar sobre a possibilidade de uma catástrofe na saúde global. Para estudiosos, nunca foi uma questão de “se” isso ia acontecer, mas de “quando”. Cinco anos depois, cá estamos.

Por meio da fundação que leva seu nome e o de sua esposa, Melinda, Gates investe US$ 5 milhões (R$ 26,8 milhões) ao ano em pesquisas sobre a gripe.

Um caminho para lidar de forma definitiva com a moléstia seria uma vacina universal —uma bala de prata imunológica, capaz de proteger contra um vírus que, a cada temporada, muda de disfarce e continua a driblar nosso sistema imunológico (até onde se sabe, o coronavírus, nesse aspecto, é mais comportado).

Sheila Homsani, diretora médica da Sanofi Pasteur, umas das maiores fabricantes de vacinas do mundo, afirma que “o verdadeiro ônus da influenza é geralmente subestimado devido a várias razões, que incluem pouca testagem e pouca notificação”.

“Também temos evidências crescentes de que a gripe pode multiplicar o risco de infarto agudo do miocárdio em até dez vezes e também desencadear outras complicações graves, mesmo em indivíduos saudáveis”, diz Homsani.

A Sanofi, como outras farmacêuticas, não divulga o montante investido em estudo de tratamentos e vacinas para cada doença, mas a multinacional diz gastar € 2 bilhões (R$ 12,3 bilhões) por ano em pesquisa e desenvolvimento.

“Recentemente foram investidos € 610 milhões (R$ 3,8 bilhões) em um centro de excelência dedicado à pesquisa e produção de vacinas na França, reforçando o compromisso em atender às necessidades da população”, afirma a diretora médica do grupo.

No Brasil, há apenas cerca de 20 grupos de pesquisa (de um total de mais de 37 mil) dedicados a desvendar o vírus da influenza.

Um dos poucos grupos que mais se dedica ao tema é o de Alexandre Machado, pesquisador da Fiocruz Minas.

Em sua avaliação, o maior gargalo está na pesquisa clínica, que é a etapa crucial para definir se um produto vai ou não chegar até a população, uma etapa que geralmente depende de dinheiro do setor privado.

“Houve uma primeira mobilização da comunidade científica na epidemia de Sars em 2003, e isso foi ampliado quando houve risco de epidemia de H5N1 [conhecida como gripe aviária] em 2007, e colocada em prática em alguma medida em 2009, na pandemia de H1N1. Certamente esse aprendizado terá impacto positivo quando formos confrontados novamente com uma pandemia de influenza.”

Só em 2019, os NIH (Institutos Nacionais de Saúde dos EUA) investiram US$ 824 milhões (R$ 4,5 bilhões) em pesquisas relacionadas à gripe.

Naquele ano, que precedeu a pandemia atual, projetos para estudar vários tipos de coronavírus (não necessariamente o Sars-Cov-2) receberam US$ 56,6 milhões (R$ 310 milhões). No Brasil, esse tipo de informação detalhada não é disponibilizada.

Para o imunologista Jorge Kalil, pode-se dizer que a comunidade internacional há anos se esforça para evitar uma nova pandemia de influenza —até 2019, o vírus liderava as apostas dos especialistas.

Entre 2015 e 2016, Kalil, então diretor do Instituto Butantan, conta que participou de conversas o Barda, órgão dos EUA dedicado ao planejamento para mitigar o efeito de pandemias e bioterrorismo.

“Seria possível, em menos de dez meses, que o Brasil e os EUA produzissem vacinas para proteger todo o continente contra um novo tipo de influenza.”

Mesmo se esses planos estivessem bem ensaiados, diz Kalil, não seria possível adaptá-los para uma resposta mais rápida do que a que se viu contra a Covid-19, como na produção de vacinas, já que não se sabia —e ainda não se sabe — quais tipos conseguem de fato proteger contra a infecção.

Ainda assim, o imunologista diz ter se surpreendido com a resposta global à pandemia. “Em seis meses já são mais de dez vacinas em testes clínicos. Um lançamento costuma demorar 15 anos.”

Em nota à reportagem, a Fundação Bill e Melinda Gates afirma que a pandemia de Covid-19 serve como um lembrete da importância de estudar a gripe e desenvolver uma vacina amplamente protetora para evitar uma pandemia.

“Ainda não sabemos como desenvolver uma vacina verdadeiramente universal que possa impedir futuras cepas de influenza, por isso são necessários investimentos significativos nesse campo”, diz a nota da entidade.

O valor para se prevenir uma nova pandemia já chegou a ser estimado na casa dos trilhões de dólares. Segundo Bill Gates, o alto custo torna-se justificável ao se considerar o potencial prejuízo provocado pelas mortes. A fundação também já direcionou US$ 350 milhões (R$ 1,87 bilhão) à pesquisa de vacinas contra Covid-19.

Outra iniciativa internacional, também apoiada pela fundação, é o Cepi (sigla em inglês para Coalizão para Inovações em Preparação para Epidemias), que busca fomentar a criação de infraestrutura e novas tecnologias.

Para Kalil, falta ao Brasil ter um grupo ou órgão que, nesses moldes, consiga fazer com que o país se antecipe aos problemas. “Não há esse tipo de inteligência no Ministério da Saúde ou no Ministério da Ciência.”

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