Publicação distorce vídeo de médica sobre protocolo da cloroquina

Raissa Soares não disse que "presidente sempre esteve certo"; médica, no entanto, vai na contramão de entidades de saúde ao recomendar uso da droga sem qualquer evidência

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São Paulo

É enganoso post no Facebook que afirma que uma médica “desmascarou governadores e prefeitos” e que o “presidente sempre esteve certo com relação à cloroquina”. A legenda é acompanhada de um vídeo gravado pela médica Raissa Soares, que trabalha no Hospital Navegantes e na Prefeitura de Porto Seguro, na Bahia, e defende o uso do medicamento para o tratamento do novo coronavírus com base em experiências pessoais.

Na filmagem investigada pelo Comprova, a médica explica o protocolo adotado pela Prefeitura de Porto Seguro para o tratamento de casos de Covid-19. As medidas recomendam a utilização de ivermectina e nitazoxanida associadas ao antibiótico azitromicina logo no começo da infecção e, em caso de piora dos sintomas, o uso da hidroxicloroquina. Em nenhum momento a médica “desmascara” políticos ou faz referência ao presidente Jair Bolsonaro (sem partido).

Além disso, o protocolo municipal é baseado nas diretrizes do Ministério da Saúde e do governo estadual da Bahia. Embora afirmem que não há evidências científicas robustas para nenhum medicamento no tratamento da Covid-19, os dois documentos indicam o uso da hidroxicloroquina em alguns casos. No vídeo, Raissa diz: “Não busque evidência nesse momento, nós estamos em guerra”. A postura da médica não é aconselhada por entidades médicas como a Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) e a equivalente norte-americana, a Infectious Diseases of America (IDSA), que defendem esse tipo de medicação apenas em ambientes de pesquisa. “Todas as estratégias, seja a hidroxicloroquina ou qualquer outra [azitromicina, ivermectina e nitazoxanida], estão em estudo, e não se justifica o uso por experiência pessoal porque isso não é ciência, isso é empirismo”, afirmou ao Comprova o infectologista Alexandre Naime Barbosa, professor da Faculdade de Medicina da Unesp de Botucatu e consultor da SBI.

Cartela de remédio com comprimidos branco e preto
Eficácia da cloroquina e da hidroxicloroquina está em discussão entre médicos - Saulo Angelo/AM Press & Images/Folhapress

Relatos de experiências clínicas da médica com seus pacientes também não são suficientes para atestar a eficácia. Barbosa ressalta que a doença não evolui para quadros graves em 81% dos casos, segundo estimativa da Organização Mundial da Saúde. Portanto, casos isolados não confirmam a alegação de melhora, já que não é possível apontar se foi efeito do medicamento ou simplesmente a evolução esperada do paciente a partir da resposta do organismo. Até 4 de junho, a taxa de letalidade no Brasil era de 5,5%, de acordo com o Ministério da Saúde.

Essa relação só pode ser confirmada por meio de pesquisas randomizadas —quando, aleatoriamente, metade dos pacientes toma o remédio e, a outra metade, placebo– e com os chamados testes duplo-cego –aqueles em que nem médico, nem paciente sabe qual dos dois produtos foi administrado. Depois, é feita a comparação entre os grupos para verificar quais tiveram melhores resultados. Nenhum dos quatro medicamentos citados apresenta evidência de que funcionem nesse tipo de estudo até o momento.

Em entrevista ao Comprova, a médica Raissa Soares afirmou que o vídeo é “descontextualizado da questão política” e que a intenção era apenas sugerir a aplicação de protocolo na cidade e na região. Em relação à legenda que foi adicionada ao vídeo por outras pessoas, afirmando que o presidente Jair Bolsonaro estaria certo sobre a hidroxicloroquina, ela afirma que “não é verdade absoluta, porque a hidroxicloroquina é uma prescrição médica”.

A médica disse que defende o uso da hidroxicloroquina porque observa que é “resolutiva quando dada na fase viral, na fase inicial da doença”. Sobre a decisão ter como base experiências pessoais, e não evidências clínicas mais robustas, a médica afirma que a experiência “não é totalmente empírica” porque, de acordo com ela, existem algumas publicações que concluíram que o remédio funciona. “A nossa experiência não é grande, mas é suficiente para mim, enquanto médica, e para os meus colegas. (…) O que a gente tem percebido é que estamos tendo resultados excelentes”, afirma.

Por fim, ela disse respeitar pareceres de entidades médicas contrários ao uso fora de protocolos de pesquisa, mas que o Conselho Federal de Medicina (CFM) autoriza a decisão do ponto de vista legal. Na publicação, a autarquia afirma que “reforçou seu entendimento de que não há evidências sólidas de que essas drogas tenham efeito confirmado na prevenção e tratamento dessa doença”, mas que “diante da excepcionalidade da situação e durante o período declarado de pandemia, […] o CFM entende ser possível a prescrição desses medicamentos”.

Para o Comprova, o conteúdo enganoso é aquele retirado do contexto original e usado em outro com o propósito de mudar o seu significado; que induz a uma interpretação diferente da intenção de seu autor; conteúdo que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.

A investigação desse conteúdo foi feita por Piauí e Estadão na sexta (5) pelo projeto Comprova, coalizão que reúne 24 veículos na checagem de conteúdos sobre coronavírus. Foi verificada pela Folha e por UOL, Jornal do Commercio, BandNews e SBT.

Erramos: o texto foi alterado

O infectologista Alexandre Naime Barbosa é professor da Unesp de Botucatu, e não de Bauru, como informado na versão anterior. O texto foi corrigido.

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