Descrição de chapéu Coronavírus

'Maria passa na frente', pedia modelo de nu internada com Covid aos 79

Vera França foi a 2.500ª paciente curada no Hospital de Campanha do Anhembi, em SP

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Com um braço cobrindo os seios, Vera Franca, 79, modelo de nu artístico há 59 anos mostra hematoma no outro braço, consequência dos dias de internação causada pelo Covid-19

Vera Franca, 79, modelo de nu artístico há 59 anos mostra hematoma no seu braço, consequência dos dias de internação causada pelo Covid-19 Eduardo Knapp/Folhapress

São Paulo

“Maria passa na frente”, diz Vera França, 79, enquanto tosse. Foram cinco dias repetindo a oração à Nossa Senhora em um dos 871 leitos do Hospital de Campanha do Anhembi, na zona norte de São Paulo. “Pedia para mim e para os outros que entravam lá. Tanta gente jovem, nem queira saber...”.

As preces aos enfermos da Covid-19 eram dirigidas também a Nossa Senhora Aparecida, Jesus, Nossa Senhora do Livramento e, sinal do sincretismo religioso dessa pernambucana criada na Bahia, a Bezerra de Menezes, o “Médico dos Pobres”, de acordo com a doutrina espírita.

A trajetória que a levou a uma cama do hospital de campanha é um exemplo de como é difícil se defender do novo coronavírus.

No estado de São Paulo, 416,4 mil casos já foram confirmados até esta segunda (20). O total de mortes em decorrência da Covid-19 no território paulista é de 19.788. Até sexta-feira (17), 223 pacientes continuavam internados no Anhembi.

“Fiz a quarentena direitinho. Só saía para ir num mercado pequeno perto da minha casa. E tive que ir no médico duas vezes fazer exames”, diz. “Mas nem todos respeitam a distância.”

Os dias de cama foram alguns dos piores de sua vida. “Era aquela febre a noite toda, aquela zoeira na cabeça, melhorava de manhã e depois voltava a piorar. Tive medo do pior”, afirma. “Estava tão desorientada que achava que estava na Santa Casa, não entendia que estava no Anhembi.”

Ainda que os dias de agonia tenham acabado na última semana quando deixou o hospital, como a 2.500ª paciente curada no local –com direito a festa de médicos e enfermeiros—, os efeitos da doença e da internação ainda são bem visíveis em seu corpo.

As marcas roxas –“de tanta injeção”— também estão lá. “Falta de ar, tremedeira, fraqueza nas pernas, tontura”, diz Vera sobre como estava se sentindo na quinta-feira (16). “Vou te falar, não tem bicho pior do que esse. Mexe com os movimentos, mexe com tudo. Até agora estou com a vista embaçada.”

Para quem vive de exibir o próprio corpo há 59 anos, como ela, tudo o que se pode desejar é que essas memórias e seus reflexos fiquem para trás. Vera, cujo nome de batismo é Maria das Dores, é modelo de nu desde os 20 anos e não vê a hora de voltar a posar em escolas e ateliês.

“Neste ano só posei uma vez e já estava tudo programado no Sesc para os outros meses”, afirma.

Com o trabalho —que começou quase sem querer— ela criou as filhas e fez a vida em São Paulo.

“Trabalhava num parque de diversões, em Salvador. Eu era a Tanagra [uma personagem apresentada como a menor mulher do mundo, e que era vista dentro de um aquário por efeito de uma ilusão ótica] e um estudante de engenharia me disse que estavam precisando de modelo na escola de belas artes. Fui e não parei mais”, diz Vera.

Tirar a roupa na frente dos alunos não foi nada demais para ela, acostumada a lidar bem com o corpo nu desde pequena. “Eu gostava de desenhar, de pintura, então já gostava de arte. Isso não foi um problema."

Problema mesmo para ela é ficar sem trabalhar, longe de sua casa e de sua rotina. “Há quase 60 anos ela mora em Santa Cecília, sai, faz tudo sozinha, já conhece pelo nome até os moradores de rua”, diz a filha Shirley França, 38.

É na casa dela que Vera está agora se recuperando. Separada do resto da família, apesar de estarem sob o mesmo teto, ela deve passar 14 dias em isolamento para evitar qualquer probabilidade de transmissão do vírus.

Enquanto isso, Vera –que é Maria— vai continuar rezando também a Maria para que a pandemia passe e para que ela possa retomar logo seu trabalho livre de roupas. “Enquanto eu puder vou continuar posando, mas acho que neste ano não vai dar mais não."

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