Site engana ao afirmar que há consenso médico para tratamento da Covid-19

Página foi ao ar sem que quatro das seis autoridades citadas soubessem do lançamento

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São Paulo

São enganosos o conteúdo e a proposta do site Covid Tem Tratamento Sim, lançado em junho. A página diz que “após meses observando o desenvolvimento da Covid-19 em vários países, a comunidade médica internacional tem a CONVICÇÃO de uma estratégia de tratamento RESOLUTIVA para a COVID-19”. A afirmação foi feita sem comprovação e sem a anuência mesmo de pessoas que supostamente apoiavam a iniciativa, conforme o Comprova verificou. A equipe do projeto conversou com quatro das seis autoridades médicas citadas pelo site e nenhuma delas soube informar quem criou a página ou mesmo quem pagou para ela ir ao ar –uma delas não sabia nem que o endereço tinha sido lançado.

Segundo Alla Dolganova, médica que atua na Prefeitura de Porto Alegre desde 2009 e diz fazer parte do grupo central que discute as diretrizes nacionais do movimento #CovidTemTratamentoSim, o objetivo dos profissionais envolvidos era criar um site com apoiadores do tratamento precoce contra a doença. Ao Comprova, a médica afirmou que o conteúdo do site ia além disso. No dia 3 de julho, a página foi tirada temporariamente do ar e, segundo Alla, a remoção aconteceu porque o site citava um coquetel de medicamentos. De acordo com ela, informar o nome das drogas vai contra o que ela e outros profissionais acreditam. “A ideia não era divulgar remédios. Dar o remédio é decisão médica”, disse Alla. O portal retornou ao ar em 7 de julho sem citar as medicações nem os profissionais de cada estado que estariam dispostos a receitá-las.

Print da página inicial do site “Covid Tem Tratamento Sim”; aparece um médico de máscara em fundo azul
Imagem do site Covid Tem Tratamento Sim, lançado em junho sem o conhecimento de alguns médicos citados na página - No site

Os medicamentos citados inicialmente pelo site eram a cloroquina, hidroxicloroquina, azitromicina, ivermectina e heparina. Diferentemente do que o endereço insinuava, nenhum deles tem eficácia comprovada contra o novo coronavírus em nenhuma fase da doença, segundo órgãos como Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), Conselho Federal de Medicina (CFM) e Organização Mundial da Saúde (OMS).

Quem são os médicos citados?

O site afirma que há 17 médicos “comprometidos com o tratamento precoce” de seus pacientes. Eles estariam distribuídos entre 12 unidades federativas: Alagoas, Distrito Federal, Espírito Santo, Goiás, Maranhão, Mato Grosso, Minas Gerais, Pará, Paraná, Pernambuco, Rio Grande do Sul e São Paulo.

O Comprova conversou por telefone com uma das profissionais citadas, Alla Dolganova, médica russa especializada em pneumologia e com PhD em virologia que está há 20 anos no Brasil. Defensora de que há comprovação em certos tratamentos de combate à doença, ela disse em entrevista ao Comprova, por telefone, que não recebeu nenhum convite para integrar o movimento, mas que seu interesse em se unir a outros médicos foi espontâneo. Alla afirmou ser parte do grupo central que discute as diretrizes nacionais do movimento. “Nossa ideia é criar um site com apoiadores de tratamento precoce. Somos um grupo de oito pessoas à frente desse movimento. Elaboramos orientações para os médicos que querem aderir. Temos quase 400 assinaturas de médicos nos apoiando”, declarou.

Alla também observou que o movimento foi dividido nas cinco regiões do país e que cada estado tem um grupo próprio no WhatsApp: “Tem muitas lives saindo sobre este projeto, com médicos, empresários, jamais imaginávamos que iria crescer tanto esse movimento. Só no Rio Grande do Sul, somos oito.” Segundo ela, além dos grupos estaduais e regionais, há um grupo de WhatsApp nacional.

Em 3 de julho, o site teve a maior parte do conteúdo removido, incluindo recomendações sobre o uso de determinados medicamentos no tratamento do novo coronavírus e a relação de médicos “comprometidos com o tratamento precoce” em cada estado.

“Avisei que não concordava em dar nome de medicações. O site saiu do ar porque vários colegas começaram a reclamar. A ideia não era divulgar remédios. Dar o remédio é decisão médica. O médico tem que analisar e descobrir que fase que está o tratamento e aí tratar. Somos a favor de tratamento precoce, como em qualquer doença viral. Cada vez mais há mais trabalhos sobre isso. Tem de começar o tratamento mais cedo possível para não chegar na UTI. Quando o paciente começa a sentir falta de ar, já está com 50% do pulmão acometido”, disse Alla.

A fala da médica russa sobre a existência de um movimento e a divisão dele por estados foi rebatida pela infectologista Vânia Brilhante, que atua no Pará. Vânia foi apontada por um dos médicos que integra as discussões, e preferiu não se identificar, como uma das “cabeças” do movimento no estado –ela negou. “Não sei se tem algum movimento. Tem um grupo de médicos que acredita nisso, não sei se o nome disso é movimento”, disse ela ao Comprova em 3 de julho.

Questionada sobre quem colocou o site no ar, disse não saber e não ter autorizado o uso de seu nome: “Não fui eu, nem sei também. Estou tentando entrar em contato com essa pessoa, que botou o meu nome lá, inclusive. Se descobrir você me conta”.

Vânia afirmou que há grupos de médicos no WhatsApp discutindo essas questões, mas não respondeu se alguém havia tomado a frente e formalizado a iniciativa de lançar um site. Ela alegou que não tem tempo para ler todas as mensagens que chegam pelo aplicativo.

Procurada novamente no dia 7 de julho para saber se havia descoberto quem colocou o site no ar, a médica disse que havia conversado sobre o assunto com o filho advogado. “Quero saber quem autorizou a fornecer meus dados para um site que não tenho ciência”. Questionada se tomaria alguma providência sobre o caso, Vânia se esquivou da resposta e disse que estava muito ocupada.

Autoridades médicas

O site apresenta seis “autoridades médicas”: Nise Yamaguchi, Roberto Zeballos, José Henrique Andrade Vila, Dante Senra, Paulo Porto, Cassio Prado. O Comprova falou com quatro delas. Nise Yamaguchi disse ser “participante voluntária” do Covid Tem Tratamento Sim e não soube dizer quem teve a ideia de colocar a página virtual no ar. “Ainda não vi o site”, disse ela, em entrevista por telefone no dia 3 de julho.

Imagem com fotos de seis médicos do site Covid Tem Tratamento Sim, lançado em junho sem o conhecimento de alguns médicos citados na página
Profissionais que apareciam como autoridades médicas na versão anterior do site - No site

Outro médico com quem o Comprova conversou foi o neurocirurgião Paulo Porto. Ele contou que os médicos do Covid Tem Tratamento Sim formam um “grupo apartidário, voluntário, sem interesse financeiro e com competências complementares na questão do combate à pandemia”. Porto diz que o colapso no sistema de saúde de Belém, no final de abril, fez com que médicos do país todo começassem a conversar sobre possíveis caminhos. “E, aí, a gente começou a tentar adaptar o que tinha de protocolo e montou um grupo, fez umas lives, umas reuniões no Zoom só para médicos para contar a experiência que o pessoal teve lá, falar um pouquinho de gestão de crise, e a coisa foi ganhando força.”

Assim como Vânia Brilhante e Nise Yamaguchi, Porto também não soube informar quem criou o site. “Olha, não sei te dizer [quem criou a página]. Na verdade, eu fui informado que meu nome iria para esse site”, contou. “Não diria que eu sou um dos organizadores, eu sou um dos componentes desse grupo. Não vejo ali uma cabeça. As pessoas foram se agregando por acreditarem em princípios semelhantes e a coisa foi andando.”

Ao Comprova, Dante Senra declarou ter sido pego de surpresa com seu nome citado no site. “Eu pertenço a um conselho apartidário, que dá o nome de ‘conselho científico’, cuja função é mostrar a nossa experiência, nada mais do que isso. Não é fazer afirmações categóricas”, disse. “Eu não fui avisado do site, eu não sabia que ele seria criado”, acrescentou.

O médico afirmou que integra um grupo no WhatsApp com outros profissionais para trocar informações sobre o uso de medicamentos. “O objetivo era mostrar a experiência, no sentido de mostrar colaboração num momento difícil”, disse ele. Senra relatou prescrever hidroxicloroquina apenas para pacientes internados, de forma que possa monitorá-los diariamente e observar possíveis efeitos colaterais. Disse ainda que deixa claro que não há comprovação da eficácia e que apresenta todos os possíveis cenários antes de indicar o tratamento com a medicação –que só é realizado com o consentimento do paciente.

Resposta semelhante deu Roberto Zeballos, outra das “autoridades médicas” do site. “Não sei quem é o dono. Sei que foi iniciativa de gente que apoio, que quer que o tratamento saia, mas não sei exatamente quem soltou. Me ligaram e perguntaram se eu ajudaria em um site. E, se for para ajudar, estou à disposição”. E, depois, acrescentou: “É um projeto de uma comissão de cientistas que, no caso, me incluíram.” Zeballos não disse quem ligou para ele para informar do site e sugeriu contatar outros colegas para saber de quem era a propriedade da página. O médico já apareceu em duas verificações do Comprova. A primeira delas, de 22 de abril, era sobre um post viral que, com base em uma entrevista com ele, afirmava que infectologistas e imunologistas tinham descoberto a “cura oficial” da Covid-19. Na gravação, Zeballos dizia ter resultados animadores, mas ele mesmo rejeitava a tese de que o método pudesse ser considerado uma cura. A segunda investigação, do dia 5 de maio, classificada como enganosa, era sobre o fato de Zeballos ter declarado que o novo coronavírus “veio de um laboratório de Wuhan”.

Outra médica com quem o Comprova conversou foi a anestesiologista Luciana Cruz. Segundo Nise Yamaguchi, ela é uma das organizadoras dos médicos que se uniram e estavam listados no site. Questionado se conhecia Luciana, Paulo Porto afirmou que sim e que “ela faz parte do conselho desse grupo, e ela teve uma atuação bastante intensa nesse episódio do Pará”. Mas Luciana disse não ter “nada a ver com o site” e que deveria ter havido algum equívoco, pois seu nome sequer estaria no endereço virtual.

O Comprova enviou, então, uma imagem captada antes de a página sair do ar, na qual aparecia o nome e uma foto dela. “Onde é isso? Eu não conheço. Isso é um site?”, perguntou. Luciana declarou não ter autorizado o uso de sua imagem e, depois de ter escrito que não sabia sobre o site, disse que havia visto a página quando foi lançada. Acrescentou que foi apenas moderadora de uma live no canal no YouTube do jornalista Alexandre Garcia, que reuniu vários médicos que aparecem no site e que sua participação na pandemia foi contar o que os profissionais viveram e aprenderam na situação de colapso no Pará.

“Eu defendo duas coisas. Primeiro, o direito do médico de ter autonomia na sua prescrição. Segundo, o direito do paciente de receber ou não os tratamentos off label (quando o medicamento é utilizado para um tratamento diferente do recomendado na bula), de acordo com o que desejar”, ela escreveu. E acrescentou: “quanto ao site, não foi ideia minha. Sei, sim, de várias pessoas que queriam um site onde pudessem juntar todas [as medicações] em um único lugar. Essa era a ideia de várias pessoas, não de uma só. Como essa ideia nunca me agradou, eu procurei não me envolver e nunca quis saber muito sobre isso também”.

Retirada do ar e retorno

Na tarde do dia 3 de julho, o site saiu do ar. Ao clicar no link, surgia a mensagem: “A pedido dos médicos integrantes do CONSELHO CIENTÍFICO e todos médicos envolvidos de vários estados no combate ao COVID-19, o site está temporariamente fora do ar para atualizações de orientações médicas”.

De acordo com Roberto Zeballos, o site “foi lançado sem ciência dos médicos” e “retirado do ar para correções”. “A gente sabia que iam fazer, mas vamos fazer uma revisão. Será um site com as abordagens e protocolos que a gente tem, estudos científicos.” Questionado sobre quais informações precisavam ser revisadas, ele respondeu que “algumas”. Ele citou o fato de ter sido incluído o logo do hospital em que ele atua. “Não quero ter logotipo de hospital nenhum”, afirmou ao Comprova. “Os médicos foram pegos de surpresa com a data de lançamento.”

A médica Luciana Cruz escreveu ter ficado sabendo que “o site incomodou muitas pessoas por ter muitas informações erradas, e por isso tiraram do ar. “Eu nem sabia que tinha a minha imagem, se não teria sido mais uma a reclamar. Confesso que nem sequer acessei e nem tinha visto isso. Você que acabou de me mostrar agora.” Questionada sobre se tomaria alguma medida legal por terem usado sua imagem sem autorização, afirmou: “Parece que o site não voltará, então talvez eu não precise fazer nada, mas vou até procurar saber”.

No dia 7 de julho, o site voltou ao ar com parte do conteúdo modificada. O portal não apresentava mais a relação de médicos que aplicavam o tratamento precoce e nem a lista de medicamentos utilizados no combate à Covid-19. O depoimento em vídeo do prefeito de Balneário Camboriú, Fabrício Oliveira, sobre o tratamento também foi removido.

Site verificado

O Comprova investiga conteúdos suspeitos que viralizam nas redes sociais. Quando o material aborda assuntos relacionados à Covid-19, a verificação se torna ainda mais importante, pois esses conteúdos podem colocar a saúde das pessoas em risco.

Segundo a ferramenta CrowdTangle, a página tinha 38.760 interações no dia 7 de julho. O vídeo com a live feita pelo jornalista Alexandre Garcia tinha 1.751.644 visualizações na mesma data. O site é enganoso porque insinua que médicos do mundo todo chegaram a um consenso sobre o tratamento da Covid-19, o que vai contra o que acreditam autoridades sanitárias e entidades médicas, segundo as quais ainda não há um tratamento reconhecidamente eficaz contra o novo coronavírus. Ele engana também ao reunir médicos que nem sabiam que seus nomes estavam na página, entre outros pontos.

Enganoso, para o Comprova é quando um conteúdo é retirado de seu contexto original e utilizado de forma a modificar seu significado, induzindo a uma interpretação equivocada.

A investigação desse conteúdo foi feita por Folha, UOL, Piauí, Jornal do Commercio, A Gazeta, Correio do Estado e GaúchaZH e publicada na terça-feira (7) pelo Projeto Comprova, coalizão que reúne 28 veículos na checagem de conteúdos sobre coronavírus e políticas públicas. Foi verificada por Estadão, SBT, Diário do Nordeste e O Povo.

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