Descrição de chapéu Coronavírus

Disputas e pressa em torno da vacina contra Covid-19 preocupam cientistas

Em corrida mundial, há 165 candidatas, 28 sendo testadas em humanos

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São Paulo e Brasília

À luz do anúncio do governo russo do registro da primeira vacina contra o coronavírus, mesmo sem estudos prévios publicados, especialistas temem que disputas políticas pelo protagonismo da imunização contaminem o ambiente científico.

Também consideram um desserviço que os governos federal e paulista estabeleçam prazos para a vacinação antes do fim dos ensaios clínicos. Ambos já sinalizam um provável início para janeiro de 2021.

Há uma corrida mundial sem precedentes na história por vacinas contra o coronavírus. São mais de 165 produtos candidatos, 28 deles em etapa clínica, ou seja, sendo testados em humanos, dos quais 6 estão na fase 3 (a mais avançada), em seis meses. A vacina russa não está nessa etapa, para a OMS (Organização Mundial da Saúde).

No Brasil, há duas vacinas sendo testadas por meio de dois acordos: um entre o governo federal (Fiocruz), a farmacêutica AstraZeneca e a Universidade de Oxford, e o outro entre a governo paulista (Instituto Butantan) e a farmacêutica chinesa Sinovac.

Em audiência pública na Câmara dos Deputados na semana passada, tanto Dimas Tadeu Covas, diretor do Instituto Butantan, quanto Maurício Zuma, diretor do Instituto Biomanguinhos (Fiocruz), disseram que as vacinas devem estar disponibilizadas a partir de janeiro de 2021.

Há também uma disputa política em jogo. Na quinta passada (6), o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) ao liberar R$ 1,9 bilhão para a produção no Brasil de 100 milhões de doses da vacina de Oxford, desdenhou da vacina chinesa e criticou o governador João Doria (PSDB). Doria disse que não politizaria a vacina.

“Se a coisa não for feita direito, respeitando o processo científico, vamos ter os piores dos mundos: as pessoas pensando que estão imunizadas e não estão ou uma quantidade de efeitos adversos tamanho que vai levar ao descrédito de toda e qualquer vacina”, diz o epidemiologista Paulo Lotufo, professor da USP.

Segundo o infectologista Esper Kallás, professor da USP, não é aceitável que, para se obter uma vacina de sucesso haja interferências, polarizações políticas, econômicas ou protecionismos. “Ou que desvirtuem os caminhos que primem pela avaliação técnica e rigorosa de segurança e eficácia dos produtos”, afirma.

Para o infectologista Renato Kfouri, secretário da SBIm (Sociedade Brasileira de Imunizações), ainda não é possível prever prazos para o início da vacinação.

“Tem que esperar os resultados dos estudos de eficácia. Eles podem mostrar que a vacina não funciona ou que só protege 30%, 40%, ou que não é segura. Tudo pode acontecer, inclusive, aparecer uma nova vacina ainda mais promissora no cenário”, diz.

A recente mudança dos protocolos clínicos da vacina de Oxford, que passou a adotar duas doses para aumentar a chance de imunização, é um exemplo da imprevisibilidade do processo, segundo Kfouri.

“Se tudo der muito certo, só lá para março ou abril os estudos estarão encerrados, aí tem que analisar os dados, submeter à revisão. É uma temeridade prometer para daqui a pouco, seis meses ou um ano. Cria uma expectativa muito ruim na população”, diz o médico.

O virologista Celso Granato, professor da Unifesp e diretor clínico do Grupo Fleury, pensa o mesmo.

“As pessoas estão ansiosas para tomarem a sua cerveja no barzinho sem máscara. Mas antes de tudo é preciso uma vacina em que se possa confiar. Enquanto isso, temos muito o que fazer [evitar aglomerações, usar máscaras, higienizar as mãos], só precisa querer fazer.”

Granato questiona: “Será que vale a pena sacrificar um risco em potencial para ter uma vacina em quatro, cinco meses? Não é melhor esperar estudos mais consolidados?”

Há ainda muitas perguntas sem respostas em torno das vacinas; por exemplo, quais serão os grupos a terem prioridade na imunização já que não haverá doses para todos em um primeiro momento.

“Não vamos ter de uma hora para outra 200 milhões, 400 milhões de doses. Vamos ter que fazer uma política de acesso, priorizando quais os grupos que vão receber a vacina primeiro”, diz Esper Kallás.

Segundo ele, a priori, há um certo entendimento de que o grupo mais importante a ser vacinado seria aquele com maior risco de doença grave.

No caso dos idosos é mais simples essa definição, mas não em outros grupos, como o das doenças crônicas.

“Depende da autodefinição da pessoa, de um atestado médico? Começa a dar confusão. Vai chegar um sujeito de 20 anos dizendo que já teve pressão alta um dia.”

Também há quem defenda como prioritário o grupo principal de pessoas responsáveis pela disseminação do vírus na comunidade. “Até hoje não sabemos. Alguns acreditam que sejam crianças, outros, os adultos jovens”, diz Kallás.

Para Paulo Lotufo, essas indicações também vão depender de respostas dos ensaios clínicos. “Se tivermos uma vacina com capacidade de reduzir muito o contágio, talvez seria possível indicá-la para crianças para poder irem em segurança para escola. Agora, se ela só reduzir mortalidade, vamos dar para os mais velhos, os grupos de risco.”

Questões de logística, como seringas e agulhas suficientes, além das câmaras frias para armazenamento, também devem ser priorizadas, segundo os especialistas. O ministério diz que isso tudo já está sendo providenciado.

Arnaldo Correia de Medeiros, secretário de vigilância do Ministério da Saúde, afirma que o público prioritário ainda está sendo definido, embora a cobertura (100 milhões) seja semelhante à da vacina contra influenza.

“Estamos conduzindo análises, mas parece razoável pensar em um intervalo etário mais avançado, com comorbidades, além de profissionais de saúde e de segurança.”

Segundo ele, ideia é, em um segundo momento, avaliar uma extensão para um grupo maior. “Essa é uma das grandes vantagens do acordo [da Fiocruz] com a vacina da AstraZeneca, que é pensar em uma produção futura.”

Medeiros diz que, além dessa vacina, o ministério tem conversado com todas as empresas, que desenvolvem outros produtos.

“O compromisso maior do ministério é salvar vidas, e o governo federal está disposto a fazer as negociações necessárias com a primeira vacina que demonstrar eficácia e segurança para a população brasileira”, afirma.

Erramos: o texto foi alterado

Versão anterior deste texto afirmava que os governos federal e paulista haviam sinalizado provável início  da vacinação para janeiro de 202, em vez de 2021. O texto foi atualizado.

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