Texto leva a conclusão equivocada ao ignorar ineficiência de medidas defendidas por Bolsonaro

Autor do post que viralizou afirma não ter feito juízo de valor sobre iniciativas do presidente em relação à pandemia

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São Paulo

Um perfil de Facebook que usa o nome Bituca Von Wittgenstein alega que o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) não pode ser responsabilizado pelas mortes decorrentes da pandemia porque medidas defendidas por ele, como isolamento vertical e tratamento precoce com cloroquina e azitromicina, não foram colocadas em prática. O texto leva a conclusões enganosas já que dois dos três pontos levantados pelo post não têm eficiência comprovada contra a Covid-19.

Em conversa com o Comprova, o titular do perfil afirmou: “Que o presidente teve esse posicionamento que eu escrevi no texto, ele teve; se ele é bom ou ruim, são outros 500, não fiz esse juízo de valor. Então, não existe a possibilidade, na minha concepção, de se falar em qualquer tipo de fake news em relação ao posicionamento dele”.

O perfil fez a postagem às 8h45 do dia 10 de agosto. O site Jornal da Cidade Online publicou o material 25 minutos depois como artigo de opinião. O texto viralizou rapidamente.

O presidente Jair Bolsonaro, de máscara, no Palácio da Alvorada, na quarta-feira
O presidente Jair Bolsonaro, no Palácio da Alvorada, na quarta-feira (12) - Carolona Antunez/AFP/Brazilian Presidency

Lockdown

O post afirma: “O presidente era contra o lockdown. Defendia o isolamento vertical desde o início. A vontade do presidente foi ignorada por prefeitos, governadores e pelo STF e, assim, cada um faz o que acha melhor, mesmo que as decisões sejam completamente incoerentes e absurdas”.

Mas, de acordo com a OMS (Organização Mundial de Saúde), o lockdown é uma das poucas formas conhecidas de combate ao novo coronavírus. Em 1º de abril, Michael Ryan, diretor-executivo da entidade, afirmou: “Além das medidas de lockdown, precisamos de estratégias abrangentes baseadas em vigilância, em intervenção de saúde pública, detecção de casos, testagem, isolamento, quarentena, e fortalecer nossos sistemas de saúde para absorver o golpe”.

Já em 20 de julho, um tuíte da organização assinado por seu diretor-geral, Tedros Adhanom, informou: “Como dissemos várias vezes, as chamadas medidas de lockdown podem ajudar a reduzir a transmissão da Covid-19, mas não podem pará-la por completo” e cita o rastreamento de contatos como essencial para isolar os casos.

Em uma análise do isolamento vertical (que isola apenas os grupos de risco e é defendido por Bolsonaro) publicada no Nexo, em 25 de março, Eduardo Flores, virologista e professor do curso de medicina veterinária da Universidade Federal de Santa Maria, diz que o presidente “está na contramão de milhares de autoridades sanitárias e cientistas de todo mundo”.

O Reino Unido, assim como o Brasil, foi um dos países que minimizaram o perigo do vírus, com seu premiê recomendando, no início de março, que “a grande maioria” dos cidadãos continuassem tocando seus negócios “como sempre”. Mas, em 23 de março Boris Johnson decretou o lockdown. A situação do país estava tão grave que a rainha Elizabeth 2ª defendeu medidas de confinamento social em um pronunciamento. Até o fechamento deste texto, o país, de 66,65 milhões de habitantes, contabilizava 46.791 mortes, segundo a Johns Hopkins University.

A Suécia adotou o isolamento vertical e teve a mais alta taxa de letalidade entre os países nórdicos. Foram 5.774 mortes para 10,2 milhões de habitantes. Por outro lado, Dinamarca e Noruega, que instauraram o lockdown e têm, somados, 11,2 milhões de habitantes, tiveram menos de 900 óbitos.

Entre os países que adotaram o isolamento vertical e obtiveram bons resultados está a Coreia do Sul, que aliou a medida a outras estratégias, como testagens em massa e utilização de tecnologia para rastrear a movimentação dessas pessoas. Foram 305 óbitos em uma população de 51,6 milhões de pessoas.

Já a Nova Zelândia, que, entre outras ações, decretou o lockdown rapidamente após o primeiro caso de contágio, em 28 de fevereiro, é um dos países mais bem-sucedidos no combate à pandemia. Estava há 102 dias sem novos casos de transmissão local até que em 11 de agosto anunciou quatro infecções de origem desconhecida em Auckland. Com isso, a primeira-ministra do país, Jacinda Ardern, impôs um confinamento à cidade. No total, foram 1.579 casos da Covid-19 confirmados e 22 mortes no país.

O Comprova questionou Fernando Vaisman, responsável pelo perfil Bituca Von Wittgenstein, sobre os bons resultados obtidos na Nova Zelândia com a adoção das políticas rígidas de isolamento. Ele acredita que há uma série de desinformações” sobre outros países e que “ninguém sabe efetivamente o que aconteceu em cada país”.

Medicamentos

No segundo item da postagem, o perfil de Bituca assinala que “o presidente defendia desde lá atrás o tratamento precoce com cloroquina e azitromicina. Até agora há gente discutindo isso e criando problemas para o tratamento”. Vaisman, responsável pela conta, justifica a declaração argumentando que o uso desses fármacos deve ser decisão do médico e do paciente, e que há diferença de tratamentos na rede pública ou privada. “Tenho casos de familiares que acabaram contraindo e quando foram ao médico, foi receitado azitromicina e hidroxicloroquina. Na rede pública, isso demorou muito para conseguir ser receitado, em especial para o tratamento precoce”, afirmou ao Comprova.

Ele complementou: “Ninguém está falando que tem que tomar hidroxicloroquina a torto e a direito, mas, a partir do momento que você adota isso como protocolo da rede pública, você permite ao médico receitar esse medicamento”.

Em 20 de maio, o Ministério da Saúde, já tendo como ministro interino o general Eduardo Pazuello, passou a orientar o uso da cloroquina e da hidroxicloroquina no “tratamento medicamentoso precoce” de pacientes com o novo coronavírus, mas ressaltou que “ainda não há meta-análises (…) que comprovem o benefício inequívoco dessas medicações para o tratamento da Covid-19”.

A azitromicina é um medicamento eficaz para o combate a bactérias e não tem ação documentada contra vírus, como o SARS-CoV-2. A droga é prescrita, de forma experimental e associada à hidroxicloroquina, a pacientes infectados com o novo coronavírus. Além disso, de acordo com a OMS, não há, até o momento, tratamento efetivo ou drogas comprovadas contra o novo coronavírus. Essa posição é ratificada por autoridades sanitárias como Associação de Medicina Intensiva Brasileira, Sociedade Brasileira de Infectologia e Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

Questionado sobre o uso dessas medicações, o epidemiologista Naomar de Almeida Filho afirmou: “No caso da cloroquina, inclusive, há efeitos colaterais fatais. Isso é irresponsabilidade.”

Ministério da Saúde

No terceiro item, Vaisman afirma: “O ministro da Saúde original (Mandetta) pregava que só se deveria ir ao hospital quando o paciente estivesse com falta de ar, o que só (sic) mostrou extremamente equivocado, já que, nesse caso, já há comprometimento dos pulmões e a chance de cura cai drasticamente. O ministro atual prega o tratamento precoce”.

De fato, durante a gestão de Luiz Henrique Mandetta, que ficou no cargo até 16 de abril, a cartilha divulgada pelo Ministério da Saúde com orientações sobre o novo coronavírus recomendava que só fosse procurado “um hospital de referência se estiver com falta de ar”. No caso de pacientes com apenas sintomas de gripe, a orientação era ficar em casa por 14 dias e seguir os conselhos da pasta para o isolamento domiciliar.

A falta de ar é indicativo de um quadro mais grave, que necessita de cuidados médicos –mas essa não é a maioria dos casos. Segundo um estudo da OMS de fevereiro, cerca de 80% das pessoas com a Covid-19 manifestam sintomas leves e acabam se curando em casa. Em torno de 14% têm quadros mais severos, que precisam de atendimento ambulatorial. E apenas cerca de 6% têm casos críticos.

Nesse sentido, a justificativa da orientação do Ministério da Saúde era evitar que o sistema de saúde ficasse sobrecarregado. Isso vale especialmente para o sistema de saúde público, responsável por atender três quartos da população brasileira. Além disso, a orientação visava diminuir os riscos de contaminação pelo novo coronavírus dentro dos próprios hospitais e postos de saúde, que poderiam ter aglomerações em filas ou salas de espera.

Essa foi a recomendação da pasta desde o início da pandemia, decretada em março pela OMS. Em julho, já sob a gestão do ministro interino da Saúde Eduardo Pazuello, o governo federal mudou a orientação, sugerindo às pessoas buscar assistência já nos primeiros sinais, como febre e tosse. O principal argumento foi aliviar a ocupação de UTIs.

Verificação

Nesta terceira fase, o Comprova verifica conteúdos relacionados às políticas públicas do governo federal e à pandemia. Informações desencontradas, sem embasamento ou fora de contexto podem levar a população a agir de forma inadequada no combate ao novo coronavírus. O post de Bituca tinha 676 reações, 96 comentários e 294 compartilhamentos no Facebook até 12 de agosto. O alcance foi ampliado pela republicação no Jornal da Cidade Online, que atingiu 131 mil interações, segundo a ferramenta CrowdTangle –só no perfil do site foram 39 mil likes, 7,5 mil comentários e 21 mil compartilhamentos.

Enganoso, para o Comprova, são os conteúdos retirados do contexto original e usados em outro com o propósito de mudar o seu significado; que induzem a uma interpretação diferente da intenção de seu autor; conteúdos que confundem, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.

O Comprova fez esta verificação baseado em informações científicas e dados oficiais sobre o novo coronavírus e a Covid-19 disponíveis no dia 12 de agosto de 2020.

A investigação desse conteúdo foi feita por Folha, Nexo e GaúchaZH e publicada na quarta-feira (12) pelo Projeto Comprova, coalizão que reúne 28 veículos na checagem de conteúdos sobre coronavírus e políticas públicas. Foi verificada por Jornal do Commercio, SBT, BandNews e Estadão.

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