Trump considera aprovar vacina contra covid-19 do Reino Unido antes das eleições nos EUA

A FDA poderia autorizar pelas regras de emergência, apesar dos temores de renúncias de autoridades por questões de segurança

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Financial Times

O governo Trump está considerando contornar os padrões regulatórios normais dos Estados Unidos para acelerar a aprovação de uma vacina experimental do Reino Unido contra o coronavírus para uso nos EUA antes da eleição presidencial, de acordo com três pessoas informadas sobre o plano.

Uma opção que está sendo avaliada para acelerar a disponibilidade de uma vacina envolveria a Agência de Alimentos e Drogas (FDA na sigla em inglês) conceder "autorização para uso emergencial" (EUA na sigla em inglês) em outubro para uma vacina que está sendo desenvolvida em parceria entre a empresa farmacêutica AstraZeneca e a Universidade de Oxford, baseada nos resultados de um estudo relativamente pequeno realizado no Reino Unido, caso este seja bem-sucedido, disseram as fontes.

O estudo da AstraZeneca incluiu 10.000 voluntários, enquanto as agências científicas do governo americano disseram que uma vacina precisaria ser estudada em 30 mil pessoas para poder receber autorização. A AstraZeneca também está conduzindo um estudo maior com 30 mil voluntários, mas seus resultados virão depois do ensaio menor.

Oferecer uma vacina antes da eleição americana poderá permitir que o presidente Donald Trump alegue que ele mudou a maré contra um vírus que já matou mais de 170 mil americanos, depois das críticas generalizadas sobre sua atuação diante da pandemia.

Joe Biden, adversário de Trump na eleição, disse em discurso na convenção do Partido Democrata na noite de quinta-feira (20) que a resposta dos EUA ao vírus foi o "pior desempenho de um país".

No entanto, se o governo Trump se apressar para obter a autorização de emergência antes da eleição, contornando as diretrizes normais do governo, poderá abalar a já duvidosa confiança do público na segurança das vacinas antes de um dos maiores programas de imunização em massa da história dos EUA.

Mark Meadows, chefe de gabinete da Casa Branca, e Steven Mnuchin, secretário do Tesouro, disseram a líderes democratas que o governo está considerando acelerar a aprovação de uma vacina, segundo uma pessoa informada sobre uma reunião que os dois tiveram em 30 de julho com a deputada democrata Nancy Pelosi, presidente da Câmara.

Meadows disse na reunião que poderá haver uma autorização de emergência, possivelmente para a vacina da AstraZeneca, em setembro. Mnuchin acrescentou que o governo espera a aprovação emergencial para uma vacina antes da aprovação total, disse a pessoa, que acrescentou que Pelosi advertiu que não deve haver "nenhum atalho" no processo de aprovação da vacina.

Um porta-voz do secretário do Tesouro disse: "O secretário Mnuchin não fez comentários sobre a AstraZeneca, nem está familiarizado com os detalhes da vacina candidata da AstraZeneca. Ele também não está ciente de quaisquer planos que a FDA possa ter em relação a qualquer autorização de uso emergencial para qualquer vacina potencial, além do que já foi declarado publicamente.

"O secretário acredita, e sempre acreditou, que qualquer decisão sobre as vacinas candidatas e quaisquer possíveis autorizações de emergência dependem da FDA."

A Casa Branca não comentou.

Se a FDA, liderada pelo comissário Stephen Hahn, conceder uma aprovação rápida para a vacina da AstraZeneca com base no estudo de Oxford, poderá provocar uma série de demissões no órgão.

No início da semana passada, Peter Marks, diretor do Centro de Avaliação e Pesquisa Biológica da FDA —que é responsável por avaliar as vacinas—, disse à agência Reuters que renunciaria se o órgão aprovasse uma vacina antes que dados definitivos mostrem que é segura e eficaz.

"Eu não poderia ficar parado vendo algo inseguro ou ineficaz ser aplicado", disse o doutor Marks. "Você tem que decidir qual é o seu limite, e esse é o meu limite."

Ele continuou: "Eu me sentiria obrigado [a renunciar] porque, ao fazê-lo, indicaria ao público americano que há algo errado".

O doutor Marks não quis fazer comentários ao FT.

Michael Caputo, porta-voz do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos EUA (HHS na sigla em inglês), que contém a FDA, disse que qualquer alegação de que o governo emitiria uma autorização rápida antes da eleição é "absolutamente falsa".

Caputo disse que o governo espera que uma vacina seja desenvolvida no primeiro trimestre de 2021.
"Sempre trabalhamos nesse sentido. Nunca me disseram, em nenhum momento, que esse objetivo mudou", disse ele. "Falar sobre uma surpresa em outubro é uma fantasia sinistra. O discurso irresponsável de que uma vacina insegura ou ineficaz está sendo aprovada para uso público visa minar a resposta do presidente ao coronavírus."

No sábado (22), Trump atacou a FDA em um tuíte que parecia acusar a agência de desacelerar as inscrições para testes de vacinas contra o coronavírus e de medicamentos, para atrasar os resultados dos estudos para depois da eleição.

"O Estado profundo, ou quem quer que seja, na FDA está dificultando muito para as empresas farmacêuticas fazerem as pessoas testar vacinas e terapias", escreveu Trump em um tuíte que marcou o doutor Hahn. "Obviamente, eles esperam adiar a resposta para depois de 3 de novembro. É preciso enfocar na rapidez e salvar vidas!"

Pelosi rebateu Trump em uma conferência de imprensa no sábado: "A FDA tem a responsabilidade de aprovar os medicamentos, avaliando sua segurança e eficácia, e não por uma declaração da Casa Branca sobre a rapidez e a politização da FDA", disse ela.

Ela acrescentou: "Esta foi uma declaração muito perigosa por parte do presidente. Mesmo para ele, foi além do comum em termos de como ele colocaria em risco a saúde e o bem-estar da população americana".

Duas das pessoas informadas sobre os planos disseram que o estudo relativamente pequeno do Reino Unido não foi projetado para produzir dados suficientes para uma autorização de emergência nos Estados Unidos. As farmacêuticas americanas Moderna e Pfizer, que também estão testando vacinas, planejam inscrever 30 mil participantes nos estudos de Fase 3 que elas iniciaram em julho. A Moderna disse que completará as inscrições até o final de setembro, enquanto a Pfizer disse que já recrutou 11 mil pessoas.

Uma das fontes disse sobre o plano: "Não vejo um caminho a seguir [para a AstraZeneca]", com base na avaliação de 10.000 pessoas. "Eles não vão chegar lá. Eles não terão as conclusões clínicas."
A pessoa previu que se o doutor Marks deixasse o cargo outros cientistas de sua divisão da FDA o seguiriam.

Um porta-voz da AstraZeneca disse que "não discutiu a autorização de uso emergencial com o governo dos EUA" e que "seria prematuro especular sobre essa possibilidade".

Paul Offit, especialista em vacinas do Hospital Infantil da Filadélfia, afirmou que seria "muito decepcionante" se o governo Trump estivesse preparando um plano desse tipo antes mesmo de ter visto os dados, porque correria o risco de "politizar a ciência".

Ele disse que mesmo que o estudo tivesse êxito um teste com 10.000 pessoas não seria grande o suficiente para descartar efeitos colaterais mais raros. "A função da FDA é proteger o público americano caso considere esses dados inadequados."

O doutor Hahn enfrentou críticas no início deste ano depois que a FDA concedeu aprovação emergencial para a hidroxicloroquina --droga não comprovada que foi repetidamente defendida por Trump--, antes de reverter sua decisão quando vários estudos mostraram que a droga não é um tratamento eficaz para o coronavírus.

Autoridades de saúde pública dos EUA enfatizaram repetidamente a importância de seguir os processos normais ao se aprovar uma vacina para a covid-19.
Em junho, Francis Collins, diretor dos Institutos Nacionais de Saúde, disse à CNN: "Cada vacina precisa ser testada em cerca de 30 mil voluntários. Não acreditamos que tenhamos força suficiente na análise, para podermos documentar o funcionamento da vacina, a menos que se alcance aproximadamente esse número".

Robert Redfield, chefe dos Centros de Controle de Doenças e Infecção, disse ao FT na sexta-feira (21): "Embora tenhamos falado sobre fazer isso em 'velocidade dobrada', não é com cortes em nossos esforços para a segurança ou a integridade científica da vacina. Estou confiante que haverá todo o rigor que sempre tivemos ao desenvolver vacinas para necessidades humanas".

Uma pessoa que trabalha na iniciativa dos EUA para encontrar uma vacina disse que a exploração do governo Trump de maneiras de contornar os procedimentos normais causou brigas internas entre os principais cientistas do governo. Anthony Fauci, diretor do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas, e o doutor Collins enfatizam a importância do rigor científico, enquanto Moncef Slaoui, czar das vacinas da Casa Branca, quer seguir em frente, disse a fonte.

Colaboraram Clive Cookson e Donato Mancini, em Londres, e Kiran Stacey, em Washington

David Crow , Demetri Sevastopulo , Hannah Kuchler e Andrew Edgecliffe-Johnson

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves 

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