Americanos e europeus querem fabricar vacina Sputnik V, diz Rússia

Presidente de fundo afirma à Folha que busca ofertar 100 mi de doses ao Brasil e deseja acordo com governo federal

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São Paulo

Após semanas sob ataque no Ocidente devido ao cronograma acelerado de lançamento de sua vacina contra a Covid-19, a Rússia vai anunciar parcerias para a produção da Sputnik V com sócios americanos e europeus.

Após confirmar novo negócio no Brasil, o país diz seguir em contato com o governo federal, que havia descartado o imunizante por já ter um acordo para fabricar a vacina britânica da AstraZeneca/Universidade de Oxford, cujos testes foram suspensos para averiguar uma reação adversa.

O presidente do fundo soberano da Rússia, Kirill Dmitriev, que promove a Sputnik V no exterior
O presidente do fundo soberano da Rússia, Kirill Dmitriev, que promove a Sputnik V no exterior - Maxim Shemetov - 7.jun.2020/Reuters

Foi o que disse à Folha Kirill Dmitriev, presidente do Fundo Russo de Investimentos Diretos, que bancou os cerca de R$ 300 milhões do desenvolvimento do imunizante pelo Instituto Gamaleya e é responsável pela estratégia de vendas e parcerias do produto.

Segundo ele afirmou por meio de aplicativo de teleconferência, anúncios de acordos com empresas privadas e fundos de investimento para fabricação e distribuição ocorrerão em até duas semanas.

Concretizados, serão uma vitória política para os russos, criticados por terem registrado a vacina para uso civil e anunciado aplicação em profissionais de saúde antes mesmo do começo da fase 3 de testes, que visa estabelecer segurança e eficácia em grandes grupos.

Essa etapa começou nesta semana na Rússia e terá 40 mil voluntários. Dmitriev espera ter resultados iniciais no mês que vem, começando assim a vacinação geral. Há acordos com outros países, como Índia (300 milhões de doses) e México (32 milhões de doses).

Nesta sexta (11), foi divulgado um acordo do fundo com o governo da Bahia para a compra de até 50 milhões de doses da Sputnik V até março, a depender de aprovações regulatórias.

Segundo Dmitriev, parte delas poderá ser ofertada por produção nacional, caso avancem as tratativas já em curso com o estado do Paraná.

Voluntário recebe a Sputnik V no começo dos testes da fase 3 da vacina em Moscou, na quinta (10)
Voluntário recebe a Sputnik V no começo dos testes da fase 3 da vacina em Moscou, na quinta (10) - Natalia Kolesnikova - 10.set.2020/AFP

Outras cinco unidades da federação negociam com a Rússia, tornando a Sputnik V grande jogadora na disputa entre as vacinas em teste no país —além da de Oxford, São Paulo está testando a chinesa da Sinovac. Dmitriev quer oferecer 100 milhões de doses (duas injeções cada) ao Brasil.

Na entrevista, ele detalha seu ponto de venda: a vacina russa já teria segurança comprovada por usar como vetor para resposta imune dois adenovírus humanos, enquanto a de Oxford usa um de macaco e duas americanas utlizam RNA mensageiro. A Sinovac usa coronavírus inativo e a CanSino chinesa, um adenovírus humano.

"Você já teve gripe de macaco?", questionou, entregando sua estratégia de marketing.

Aos 45 anos, esse nativo da Kiev (Ucrânia) ainda soviética é a face pública e o criador do nome da vacina, após ter dito em junho que o país viveria um "momento Sputnik" —quando os soviéticos assombraram o Ocidente ao lançar o primeiro satélite (sputnik, em russo) do mundo, em 1957.

Dmitriev diz que a escolha do nome teve a ver com o conhecimento dele e questionou qual seria outro russo famoso no exterior. "Lênin?", brincou o repórter, remetendo ao fundador da União Soviética. "Vacina Lênin seria um problema."

O executivo nega fazer propaganda política do governo de Vladimir Putin e diz que a Rússia é alvo de uma campanha difamatória de laboratórios e países, mas que, em quatro ou cinco meses, todos estarão tentando acelerar seus próprios testes. "Ninguém vai nos pedir desculpas", disse.

*

Qual é o cronograma para essas 50 milhões de doses para a Bahia? Haverá produção local? - Primeiro, estamos trabalhando com o estado do Paraná e com a União Química para produção no país.

As doses iniciais nós podemos entregar, e produzir em novembro e dezembro, mas não em grandes quantidades. Tudo depende, claro, de aprovação [da Anvisa]. Esperamos começar estudos clínicos no Brasil este mês. Se tudo for bem, começamos a distribuir em novembro.

Maiores quantidades, em janeiro, fevereiro. Até março, 50 milhões de doses, e podemos ter 100 milhões de doses no país, cobrindo metade da população. O Brasil é muito estratégico para nós. Queremos exportar para outros países da América Latina no ano que vem, porque vocês têm uma boa capacidade de produção de vacinas, como Índia e Coreia do Sul.

Há ofertas para outros estados? - Temos mais cinco estados que estão interessados e começamos discussões com o governo federal, queremos coordenar com ele.

Como estão as conversas com o governo federal? Houve contatos, mas depois o ministro da Saúde disse que não haveria acordo, até porque já havia o acerto com a AstraZeneca/Oxford. - Estamos em contato com o Ministério da Saúde. Vamos pedir autorização em breve para testes no Brasil. Nós fizemos uma apresentação no Congresso, estamos bastante abertos.

O Brasil, por sua péssima situação epidemiológica, já tem acordos grandes com Oxford, a chinesa Sinovac e vocês. O país é um campo de batalha? - Eu não gosto de definir isso como uma guerra. Nós só queremos mostrar a nossa abordagem e ofertá-la. A decisão é dos governos e do povo brasileiros.

Uma das grandes vantagens da nossa vacina é o fato de ela usar o adenovírus humano. Você já teve resfriado, gripe antes?

Claro. Muitas pessoas tiveram contato com adenovírus. - Todo mundo já teve gripe leve. Nós usamos isso [o adenovírus humano], que é mais fraco que uma gripe leve porque não se replica. Mas você já teve gripe de macaco?

Entendo sua estratégia de venda. - Gripe de macaco! [a vacina da AstraZeneca/Oxford usa adenovírus de chimpanzés]. Nós acreditamos que adenovírus humanos têm de ser parte de vacina em todos os países, porque é o mais seguro método de entrega [do material genético do novo coronavírus que induz resposta imune].

Por 100 mil anos o homem tem convivido com os adenovírus. Isso é diferente do adenovírus de macaco e do mRNA [RNA mensageiro, usado para transportar o estimulante de resposta em vacinas como a das americanas Pfizer e Moderna].

Estamos orgulhosos de ter uma vacina muito orgânica, que é muito é diferente de algo novo, que pode não funcionar. Os testes da AstraZeneca pararam, e espero que voltem. Mas ninguém testou o adenovírus de macaco por muito tempo.

O sr. e [o diretor do Instituto Gamaleya Alexander] Ginzburg defendem essa posição acerca da segurança da vacina. Mas como fica a questão da eficácia? - Nas duas primeiras fases, foi 100% de eficácia. Diziam que, como todo mundo já teve adenovírus, estariam imunes à nossa vacina. Mas mostramos que, com doses fortes, todos tiveram resposta imune. Então, por que as pessoas usariam uma vacina com adenovírus de macaco? Tinham medo de que não funcionasse o humano.

Ainda assim, a comunidade científica nacional e mesmo o estudo russo publicado na The Lancet dizem que é necessário ter mais testes, a fase 3, para poder atestar a segurança e a eficácia. - É onde estamos. A fase 3, pós-registro, já tem 36 mil dos 40 mil voluntários recrutados na Rússia. Isso em quatro dias. Teremos resultados preliminares em outubro ou novembro.

A vacina da gripe é alterada todo ano, e nem por isso é preciso refazer a fase 1, 2 e 3. Nós temos a vacina de ebola com a mesma plataforma de entrega.

Escolhemos uma vacina provada e a modificamos um pouco. As outras nunca foram feitas. Eles precisarão de três, quatro anos para compreender as consequências.

Sobre os testes na Rússia, quem será vacinado? O Ministério da Saúde diz que trabalhadores da saúde irão tomar ao mesmo tempo que os voluntários da fase 3. - Sim, serão. Veja, registramos primeiro nossa vacina. Todos perguntaram: “Como vocês podem registrar antes da fase 3?”. Duas semanas depois, os EUA e o Reino Unido disseram que também podem registrar antes da fase 3.

Na Rússia, teremos vacinação em paralelo. Eu me vacinei, o prefeito de Moscou se vacinou. Por quê? Porque é seguro.

Mas o sr. e essas outras autoridades estão sendo acompanhados pelo Gamaleya? - Sim, eu meço meu nível de anticorpos e faço outro testes sempre. Todos que receberam a vacina são acompanhados.

E o público em geral? - Vai começar em outubro. Podemos fazer isso. Com nova tecnologia, não é possível fazer. No caso das vacinas de mRNA, você ainda injeta nanopartículas, algo que não faz parte do corpo humano.

Nunca teríamos uma aprovação emergencial de uma vacina com mRNA ou adenovírus de macacos.

Qual sua avaliação das críticas feitas em carta aberta por alguns cientistas, de que resultados do estudo da Lancet tinham dados duplicados nas amostras? - Denis Luganov (diretor científico do Gamaleya) foi muito claro. Nós temos todas aquelas amostras de sangue à disposição da Lancet.

Isso é a parte de uma série de histórias que nós ouvimos para minar a vacina russa. Antes do registro, houve aquela história de que a gente havia roubado a vacina. Ninguém falou em segurança, dados.

É uma campanha de difamação. Ninguém fala de coisas perigosas de outras vacinas.

Na fase 2 do estudo da AstraZeneca, apenas 10 de 1.076 voluntários tomaram duas doses da vacina. Depois disso, viram que seria preciso duas injeções. Eles cometeram um erro de não aplicar duas vezes. E deram só para dez pessoas, isso é imprudente. Nosso pessoal sabia desde o dia 1 que seriam necessárias duas doses.

O sr. vê uma guerra de vacinas? - Você precisa entender que 80% do mercado de vacinas é controlado por cinco companhias. É uma combinação de farmacêuticas que não querem competição russa e governos que não querem admitir que a Rússia tem boa ciência.

São muitas forças. Mas, se você está no deserto, e a Rússia lhe oferece água, você tem a opção de tomá-la ou não.

Temos pessoas da América Latina, do Oriente Médio e da Ásia bem mais razoáveis. Mas eu posso lhe dizer algo. Nesse momento, temos gente da Europa e dos Estados Unidos nos procurando, oferecendo parcerias para produzir a vacina. Finalmente estão entendendo a diferença do nosso produto.

São países ou entes privados ocidentais? O sr. pode revelar quem são? - São empresas e fundos de investimento privados. Por ora só posso falar isso, mas devemos ter anúncios nas próximas duas semanas.

Desde quando a vacina russa surgiu, o sr. vem criticando o Ocidente por difamação. Por outro lado, o sr. chama sua vacina de Sputnik, e falou em um “momento Sputnik”. Isso não é também politizar a questão? - Não, nós discutimos que Sputnik é um dos poucos nomes russos reconhecidos internacionalmente. Diga-me outro nome russo que seria reconhecido.

Lênin? - Uma vacina Lênin seria um problema [risos]. Nós sabemos como será o cenário em quatro ou cinco meses. Todos irão admitir acelerar suas fases 3.

Aliás, teremos reconhecimento disso de alguns países ocidentais em algumas semanas, posso lhe dizer.

Eles tentaram nos atrasar antes de ter as vacinas deles prontas. Depois, todo mundo se esquecerá dessas críticas. Eu acho que isso não é ético. São acusações que vão passar e ninguém vai lembrar de pedir desculpas.

O sr. vê ganho político para a Rússia, em caso de tudo dar certo com a sua vacina? - Nós tivemos pessoas morrendo de Covid-19. É uma coisa horrível. Nosso objetivo é salvar nosso povo e oferecer nossa tecnologia para outros.

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