Descrição de chapéu Coronavírus

Imunização em dezembro só é possível com resultados da fase 3, dizem cientistas

Para conter a pandemia, governos lançam mão do chamado uso emergencial, muito criticado por especialistas

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São Paulo

O governador João Doria (PSDB) anunciou na quarta-feira (23) que a imunização dos primeiros grupos de profissionais de saúde do estado de São Paulo contra o coronavírus deve ocorrer na segunda quinzena de dezembro.

No entanto, ainda não está claro se o imunizante será eficaz em impedir a transmissão e a infecção pelo vírus ou apenas dirimir as manifestações mais severas da Covid-19 no organismo.

Chamada de CoronaVac, a vacina chinesa está atualmente na fase 3 de testes clínicos, a qual inclui cerca de 9.000 voluntários no Brasil. Também na última quarta, a Anvisa aprovou a expansão do número de voluntários no país para 13 mil.

Para especialistas ouvidos pela Folha, somente após os resultados dessa etapa é possível falar em eficácia da vacina.

Denise Garrett, epidemiologista especialista em saúde pública e vice-presidente do Sabin Vaccine, explica que ainda não é possível saber qual será o resultado das vacinas em desenvolvimento antes da conclusão dos ensaios de fase 3.

Até o momento, estudos das fases pré-clínica da vacina da Universidade de Oxford/AstraZeneca não impediram a replicação viral do Sars-CoV-2 em macacos rhesus, apenas a manifestação da doença pulmonar.

Em relação à Sinovac, ainda não se divulgaram dados a respeito da prevenção da infecção, apenas de produção de anticorpos por parte dos indivíduos imunizados nas fases 1 e 2 de ensaios clínicos.

“Quando há o anúncio de 98% de eficiência [como afirmou Doria sobre a CoronaVac] assume-se que a vacina garante uma proteção de 98%. Mas isso não tem absolutamente nada a ver com proteção. Eficiência de uma vacina nesta fase significa soroconversão, ou seja, induzir à produção de anticorpos. A eficácia de uma vacina só é observada após os resultados completos da fase 3.”

Segundo a Organização Mundial da Saúde, para garantir proteção à população, uma vacina contra a Covid-19 deve ter uma eficácia mínima de 50%, com não menos que 30% em seu limite inferior.

A eficácia de uma vacina também não é igual em todas as populações. Diferenças genéticas entre etnias e populações parecem influenciar respostas imunes distintas, explica Renato Astray, farmacêutico e pesquisador em virologia no Laboratório Multipropósitos do Instituto Butantan.

“No Brasil temos a vantagem de ser um povo com muita miscigenação, então pode ser que essas diferenças sejam menores. Mas eu acredito que a resposta dos povos indígenas à vacinação terá uma diferença em relação às outras etnias.”

O epidemiologista e autoridade em saúde pública em Hong Kong Gabriel Leung publicou recentemente uma carta na revista científica The Lancet, uma das mais prestigiadas da área, em que faz um alerta àqueles que aguardam um "retorno à normalidade” após uma vacina da Covid-19 se mostrar eficaz.

Ele cita que os camelos infectados com o vírus da Mers, um coronavírus relacionado ao Sars-CoV-2, embora apresentem taxa elevada de soroconversão (acima de 90%), não são imunes à reinfecção. Casos de reinfecção de Covid-19 também foram reportados recentemente, mesmo com uma aparente produção de anticorpos após o primeiro contágio.

Para Leung, exceto pela vacina da empresa norte-americana Novavax, nenhuma das outras vacinas atualmente na terceira fase de ensaios clínicos parece prover imunidade esterilizante, isto é, proteção total da infecção propriamente dita, apesar de reduzirem a severidade da doença.

Em relação à promessa de uma vacinação em dezembro, Garrett menciona um compromisso assumido pelas empresas farmacêuticas envolvidas com a produção de vacinas nos EUA de priorizarem a ciência e não solicitarem o uso emergencial das suas vacinas antes de completada a fase 3.

Ela vê com preocupação a pressão de políticos para uma imunização sem garantia da eficácia e segurança da vacina. “O problema é que, com essa tendência de aprovação de uso emergencial, porque todos estão com pressa, não há como determinar com o rigor científico necessário a eficácia e segurança da vacina."

A médica afirma ainda que a taxa de soroconversão nos voluntários testados não é o único parâmetro para o estudo de uma vacina.

“Mesmo com uma boa resposta imunológica nos voluntários nas fases 1 e 2, é só na fase 3 que podemos avaliar se a vacina está conferindo proteção. Para chegarmos à essa conclusão, precisamos de um número mínimo de infecções no grupo recebendo a vacina e no grupo placebo.”

Como os ensaios clínicos são duplo-cego e randomizados, ou seja, nem os médicos nem os voluntários sabem quem recebeu placebo e quem a dose contendo o imunizante, é preciso um número de infecções mensurável em um dos dois grupos para calcular a eficácia de uma vacina, e isso demanda tempo.
"Particularmente, como cientista, quando vejo as empresas farmacêuticas recomendarem e aprovarem o uso emergencial de uma vacina antes de terminar a fase 3, questiono a ética dessa empresa e o rigor científico dela.”

Seria possível encerrar um ensaio antes, afirma ela, se os resultados fossem muito claros —por exemplo, se a maioria esmagadora de infecções por Covid-19 fosse no grupo dos que receberam placebo e não houvesse quase nenhuma infecção entre o grupo dos imunizados.

“Ainda assim, quando interrompemos uma fase 3 muito cedo, pegamos atalhos em relação à investigação de segurança da vacina.”

O Brasil é um dos países mais atrativos no momento para testar vacinas na fase 3 de ensaios clínicos, uma vez que a taxa de contágio do coronavírus continua elevada no país.

A vacina da Sinovac recebeu a aprovação do governo chinês, no final do último mês, para uso emergencial no país em profissionais de saúde.

A empresa afirmou que 50 mil pessoas já receberam o imunizante no país e que a maioria (94,7%) não apresentou efeitos adversos, segundo representante da farmacêutica. A maior parte das reações que apareceram foi leve; não houve nenhuma reação severa.

Leung também critica as ações de governantes para tentar acelerar a aprovação de vacinas. Tais motivações, diz, podem aumentar a descrença da população em vacinação, uma das mais consolidadas e seguras formas de prevenção de doenças conhecidas. No entanto burlar etapas e acelerar os processos científicos pode ser danoso.

Garrett faz coro a esse discurso, e afirma que a não ocorrência de efeitos adversos graves indica uma segurança da vacina no número de pessoas testadas. Mas efeitos adversos raros, que ocorrem em 1 por 100 mil por exemplo, só serão detectados depois da aprovação do imunizante, quando iniciada a vacinação em massa da população.

“O processo pode ser acelerado, como está sendo feito para a vacina da Covid-19, mas não podemos pular etapas de segurança. Todos querem uma vacina o mais rápido possível. ​Mas a aprovação precoce de uma vacina pode ser desatrosa para o controle da pandemia”, finaliza.

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