Não é verdade que vacina contra a Covid-19 cause câncer e danos genéticos ou torne alguém gay

Em áudio que viralizou, engenheiro que se identifica como 'doutor' faz alegações fantasiosas sobre a doença e as vacinas

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São Paulo

É falso que a vacina que está sendo desenvolvida contra a Covid-19 seja capaz de provocar câncer, alterações genéticas, problemas de fertilidade e “homossexualismo”, ou que o imunizante tenha como intenção reduzir a população mundial. As alegações estão em um áudio que circula pelo WhatsApp e nas redes sociais.

Ao contrário do que afirma o autor do conteúdo, verificado pelo Comprova, as vacinas protegem milhões de pessoas em todo o mundo contra doenças graves, e os imunizantes que estão em desenvolvimento contra o novo coronavírus estão sendo testados em conjunto por laboratórios e instituições de pesquisa de várias partes do mundo, com o aval de órgãos regulatórios de diferentes países.

A Coronavac, citada no áudio investigado, é produzida pelo laboratório Sinovac Biotech em parceria com o Instituto Butantan e possui o aval da Anvisa para testes no Brasil. Segundo a professora da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre e membro da Sociedade Brasileira de Imunologia, Cristina Bonorino, as afirmações de que a vacina seria capaz de provocar mudanças de gênero e sexualidade são “completamente mentirosas”, e o imunizante do laboratório chinês não é capaz de provocar qualquer alteração genética. A especialista também descarta a relação entre a vacinação e a ocorrência de câncer.

Mão direita segura frasco/ampola de vidro da vacina Coronavac
Frasco da Coronavac, que está sendo desenvolvida pelo Butantan em parceria com a Sinovac e se mostrou segura - Pedro Ladeira/Folhapress

O áudio ainda compara a Covid-19 a um resfriado, e diz que ninguém morreu por causa da ação da doença –o que não é verdade. Mais de um milhão de mortes causadas pelo novo coronavírus já foram registradas no mundo, segundo a OMS e a Universidade Johns Hopkins.

O Comprova entrou em contato com o suposto autor do áudio, que se identifica como doutor Marcelo Frazão, pedindo esclarecimentos sobre o que ele alega no material, mas, até a publicação desta checagem, não obteve resposta.

Em teste

No áudio, o homem ainda afirma que “qualquer um que toma essa vacina hoje está servindo de cobaia”, mas, no Brasil, a aplicação das doses é feita em milhares de voluntários que se dispuseram a participar da fase três de testagem do imunizante, que avalia a eficácia dele. Até agora, aliás, os testes indicam que a Coronavac é a mais segura, por não ter causado efeitos colaterais graves. Ainda assim, a vacina ainda não está sendo aplicada fora do contexto controlado dos testes, e só será aplicada na população se for aprovada pela Anvisa.

Alterações no organismo

Frazão diz também que a vacina vai alterar o código genético de quem a tomar e de seus descendentes. “Vocês vão causar síndromes perigosas que vão destruir os seus filhos e netos, inclusive no sentido de fertilidade e de homossexualismo”, diz ele –usando o termo homossexualismo, que é relativo a doença e não é usado há 30 anos, quando passou-se a utilizar o termo “homossexualidade” (com o sufixo que significa comportamento).

De acordo com a professora Cristina Bonorino, as afirmações do no áudio são mentirosas e perigosas. “Para alterar o código genético, você precisa de algo que se insira no seu DNA, e a gente sabe que as vacinas não vão fazer isso”, diz. Especificamente sobre a Coronavac, citada no áudio, Cristina afirma que ela usa o vírus inativado, ou seja, “não tem possibilidade nenhuma de alterar o código genético”.

Questionada sobre a afirmação de Frazão, de que “menino vai deixar de ser menino e virar menina”, a especialista respondeu: “Bom, hoje em dia o pessoal fala que a Terra é plana, né? Mesmo com evidências de que não é. Então, isso fica muito difícil de rebater… É uma afirmação completamente mentirosa”.

Sobre a questão da fertilidade e do câncer, ela comentou que não há estudo que confirme o que Frazão diz e que, se fosse verdade, haveria muito mais gente com câncer e as mulheres não estariam tendo filhos. Ela explicou que os efeitos das vacinas, inclusive as que estão há décadas no calendário, na população são constantemente acompanhados por cientistas. “A gente faz estudos, busca efeitos, ajusta imunizações a partir do que é detectado. É muito perigoso uma pessoa sair por aí fazendo esse tipo de declaração.”

A OMS e a pandemia

“A Organização Mundial da Saúde está repetindo tudo que o presidente Bolsonaro falou lá no início, que essa porcaria desse resfriado não mata ninguém, que o que mata é esse controle populacional, desemprego, fome, miséria”, diz Frazão no áudio. As afirmações não são verdadeiras.

Além do novo coronavírus não ser uma doença respiratória comparável a um resfriado, a OMS nunca disse que o vírus não é letal. Ao contrário: a instituição vem empenhando esforços, desde março, para orientar governos e pessoas para as melhores práticas para o combate à doença. No site da OMS, é possível encontrar boletins epidemiológicos atualizados semanalmente, com os dados sobre casos da Covid-19 e mortes provocadas pela doença em todo o mundo. No material publicado em 27 de outubro, com dados até o dia 25, o órgão internacional contabilizava mais de um milhão e cem mil mortes pela doença.

O Projeto Comprova, além disso, já esclareceu que a OMS reconhece os impactos sociais e econômicos negativos causados por medidas como o lockdown, mas que fala de um enviado especial do órgão estava sendo tirada de contexto, nas redes sociais, para sugerir que a entidade condena esse tipo de abordagem durante a pandemia.

Doria pai terrorista?

Ao se referir a João Doria, governador de São Paulo, Frazão diz que ele é “filho de um terrorista comunista que foi expulso do país porque era um terrorista comunista”. João Agripino da Costa Doria nunca teve relação com o terrorismo.

Antes de se tornar político, ele foi um publicitário de sucesso, criador do Dia dos Namorados no Brasil. De acordo com reportagem da Folha, ele se tornou suplente de deputado federal pelo Partido Democrata Cristão da Bahia em 1962 e assumiu o mandato meses depois. Antiimperialista, defendia o então presidente João Goulart e foi um dos primeiros deputados cassados após o golpe de 1964. Sem direitos políticos, optou por seguir para o exílio em Paris, onde se graduou em psicologia.

Dez anos depois, João Doria pai retornou ao Brasil. Morreu em 2000, aos 81 anos.

Marcelo Frazão

No início do áudio, o homem se identifica como “doutor Marcelo Frazão” e se dirige à população de São Simão, no interior de São Paulo.

A equipe procurou Frazão por e-mail, mas não obteve retorno até a publicação desta verificação. Sem a resposta dele sobre a autoria do áudio, buscamos outros elementos que pudessem confirmar que quem fala realmente é Marcelo Frazão.

Analisamos, pela ferramenta WavePad, de edição de áudio, o formato das ondas sonoras correspondentes ao trecho em que ele diz “doutor Marcelo Frazão”, e comparamos com um trecho em que ele diz a mesma coisa, retirado de um vídeo de apresentação no canal dele no YouTube, o Direita TV News. Nessa primeira observação, não há grandes diferenças de entonação.

Em uma segunda análise, comparamos o sotaque das pessoas que falam em cada trecho, e há compatibilidade entre o áudio e o que é dito no vídeo. Na voz, porém, há diferenças, que podem ser explicadas pela distância da boca para o microfone, da diferença dos equipamentos usados na captura do vídeo e do áudio e mesmo do momento em que cada um foi gravado.

Em um terceiro momento, verificando as redes sociais de Frazão, encontramos outras postagens, principalmente no Facebook, em que ele repete parte das afirmações do áudio, dizendo que “A VACHINA provoca mudanças genéticas gravíssimas, câncer, lesões cerebrais, síndromes graves e mudanças ligadas a (sic) sexualidade.” Em uma das várias páginas mantidas por ele no Facebook, o áudio foi repostado.

Esses elementos já seriam suficientes para atribuir a ele o material, mas, além de tudo isso, Frazão confirmou ao portal Aos Fatos que o áudio é de sua autoria.

Marcelo Frazão de Almeida é um engenheiro agrônomo (segundo a página no Linkedin) de São Simão. Também no Linkedin, ele afirma ainda ser “analista de sistemas, economista, ex-professor universitário de teoria econômica, ética e sociedade, político e escritor”, além de “palestrante de política econômica e sociedade”. Não há registro de currículo de Frazão na plataforma Lattes, e ele não especifica a que instituição já esteve vinculado.

Neste ano, Frazão concorre ao cargo de prefeito de São Simão, pelo Patriota. Até agora, segundo o portal de divulgação de candidaturas e de contas eleitorais do TSE, o Dr. Frazão, como se identifica na campanha, arrecadou R$ 6.720, sendo que 90% desse total (R$ 6.050) foi doado por sua mulher, Vanessa Cristiane Morgan Frazão, que é candidata a vereadora pelo mesmo partido. Ela recebeu R$ 650 para a campanha, doados pelo marido.

Em suas várias páginas no Facebook, Frazão acumula fotos com figuras que são ou já foram de destaque no meio bolsonarista, como a deputada Carla Zambelli, Rogéria Bolsonaro, primeira do presidente, o blogueiro Allan dos Santos e o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP).

Verificação

Nesta terceira fase, o Comprova verifica conteúdos relacionados às políticas públicas do governo federal e à pandemia. Em um ano eleitoral em que as disputas políticas estão acirradas, a Covid-19 virou tema de debates em todos os campos e a desinformação que circula nas redes sociais pode custar vidas.

Confirmar informações sobre a ciência, sobretudo os estudos de vacina, pode aumentar a confiança das pessoas nas pesquisas científicas. Por isso, o áudio, que tenta desacreditar os imunizantes, foi verificado. Publicado em 20 de outubro na página de Facebook de Marcelo Frazão, ele 113 compartilhamentos e também está circulando no WhatsApp.

Falso, para o Comprova, é o conteúdo inventado ou que tenha sofrido edições para mudar o seu significado original e divulgado de modo deliberado para espalhar uma mentira.

O Comprova fez esta verificação baseado em dados oficiais sobre o novo coronavírus disponíveis no dia 29 de outubro de 2020.

A investigação desse conteúdo foi feita por Folha, BandNews e Rádio Noroeste e publicada na quinta-feira (29) pelo Projeto Comprova, coalizão que reúne 28 veículos na checagem de conteúdos sobre coronavírus e políticas públicas. Foi verificada por GZH, Niara, Correio, A Gazeta, Bereia, Estadão, Piauí e NSC.

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