Post distorce informações para insinuar que China não usará a própria vacina

Texto desconsidera que teste clínico está sendo feito no Brasil pois os casos por lá haviam caído, o que dificulta ensaios

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São Paulo

Uma publicação distorce informações sobre as negociações para aquisição de vacinas contra a Covid-19 sugerindo que há algo de errado com os imunizantes desenvolvidos por empresas chinesas, já que um laboratório do país fechou acordo com a AstraZeneca, empresa parte britânica e parte sueca, para que a China receba 100 milhões de doses do composto desenvolvido em parceria com a Universidade de Oxford, caso ele se prove eficaz para combater a doença. O post questiona por que os chineses estariam em busca dessas vacinas enquanto vendem os seus produtos para o Brasil.

Apenas uma das 13 vacinas desenvolvidas por chineses tem acordo para distribuição no Brasil: a CoronaVac, da Sinovac Biotech. O acordo com o governo de São Paulo prevê a importação de 60 milhões de doses, mas também que a tecnologia será transferida para o Instituto Butantan, que produzirá a vacina no país. Até dezembro deste ano, o Butantan pode produzir até 40 milhões de ampolas.

Detalhe do ombro de mulher recebendo vacina por injeção dada por mãos com luvas brancas
Voluntária recebe aplicação de dose da CoronaVac em São Paulo - Governo do Estado de São Paulo/Divulgação

O conteúdo verificado pelo Comprova desconsidera ainda que a China já concedeu autorização especial para que as vacinas da Sinovac e da Sinopharm –ambas desenvolvidas lá– sejam aplicadas na população do país considerada de alto risco, caso dos médicos e profissionais de saúde. O material não leva em conta, também, que vários países têm buscado diversificar seus fornecedores de vacinas.

A China não é o único país que desenvolve vacinas contra a Covid-19 a comprar imunizantes produzidos por outras nações. Estados Unidos e Reino Unido, por exemplo, têm, cada um, acordos com seis diferentes fornecedores de vacinas contra o novo coronavírus, segundo levantamento do jornal Financial Times. Como ainda não é possível saber quais das 42 vacinas em fase de testes serão eficazes para imunizar o vírus, o país que conseguir fechar acordos de fornecimento com mais de uma empresa farmacêutica tem mais chances de ter um imunizante eficiente disponível para sua população, mesmo que um deles não seja aprovado.

A publicação também desconsidera que 12 das 13 vacinas desenvolvidas por empresas ou institutos de pesquisa chineses foram aplicadas primeiro em cidadãos da própria China, em suas fases 1 e 2 de testes em humanos. A CoronaVac, vacina da Sinovac que está sendo testada no Brasil em conjunto com o Instituto Butantan, veio realizar a fase 3 do ensaio clínico na América do Sul porque, na época, o número de novos casos na China havia caído substancialmente, o que tornaria difícil saber se as pessoas não se infectaram por causa do imunizante ou simplesmente porque não tiveram contato com o vírus.

Especialistas

Para o professor Eduardo Martins Netto, que é médico-epidemiologista do Hospital Universitário Professor Edgard Santos e chefe do Laboratório de Pesquisa em Infectologia na mesma unidade, da Universidade Federal da Bahia, além de coordenador do Comitê de Ética da Faculdade de Medicina da Bahia, é normal que os países busquem, neste momento, uma diversidade de fornecedores de vacinas.

“Não existe ainda nenhuma vacina licenciada em nível mundial. Só existe investigação, pesquisa para vacina. Os países estão diversificando os possíveis fornecedores. Isso é muito natural, porque se você não tem nada, você pode comprar de uma determinada fábrica ou de outra. Você pode dizer: ‘olha, se essa vacina não deu certo, não protegeu, tem uma perspectiva para outra vacina”, aponta.

Para o epidemiologista, o que os países podem fazer, neste momento, é se comprometer a comprar uma vacina, se ela funcionar. “Já houve investimento em fábricas, como Butantan, Manguinhos, que investiram em aumentar as instalações para produção da vacina”, completa.

Pesquisadora da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) e professora de Imunopatologia da Faculdade de Medicina da Bahia, a imunologista Viviane Boaventura explica que “há normas de ética e boas práticas em pesquisa clínica que tornam necessário que as primeiras etapas de estudos de desenvolvimento de medicamentos e vacinas sejam testadas necessariamente no país que desenvolveu”.

Sobre a diversidade de fornecedores, ela disse acreditar que os países possam, sim, comprar de outros. “Mesmo porque devem ser tecnologias diferentes e podem facilitar a produção e distribuição para um grande número de pessoas. Pode ser o caso”, sugere.

Verificação

Em sua terceira fase, o Comprova verifica conteúdos suspeitos sobre a pandemia e sobre políticas públicas do governo federal que tenham ampla repercussão nas redes sociais. Quando a publicação envolve medicamentos ou métodos de imunização contra o novo coronavírus, a checagem é ainda mais importante porque o conteúdo enganoso pode levar as pessoas a deixarem de tomar medidas para se proteger contra a infecção.

Atualmente, as vacinas são um dos meios mais promissores para o controle definitivo da doença, que já causou 147,4 mil óbitos e infectou mais de 5 milhões de pessoas apenas no Brasil.

A publicação no perfil pessoal do Facebook que foi verificada aqui teve mais de 41 mil compartilhamentos. O texto teve 9,4 mil interações na rede social, após ser compartilhado por páginas de apoio ao presidente Jair Bolsonaro (sem partido), segundo a ferramenta de monitoramento CrowdTangle. O presidente disse, em setembro, que não podia obrigar ninguém a tomar a vacina, embora uma lei assinada por ele em fevereiro preveja a possibilidade de vacinação compulsória contra o novo coronavírus, como mostrou o Comprova.

Enganoso, para o Comprova, é o conteúdo que usa dados imprecisos; ou que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.

O Comprova fez esta verificação baseado em dados oficiais sobre o novo coronavírus disponíveis no dia 7 de outubro de 2020.

A investigação desse conteúdo foi feita por Jornal do Commercio e Correio e publicada na quarta-feira (7) pelo Projeto Comprova, coalizão que reúne 28 veículos na checagem de conteúdos sobre coronavírus e políticas públicas. Foi verificada por Folha, GZH, Poder360, Piauí e O Povo.

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