Médicos devem abordar espiritualidade nas consultas, orienta Sociedade de Cardiologia do Estado de SP

Gratidão melhora a evolução de insuficientes cardíacos, enquanto solidão e isolamento aumentam a mortalidade em geral, segundo estudos

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São Paulo

Manter a saúde do coração em dia significa ir além das tradicionais orientações médicas, como não beber e nem fumar, evitar estresse, controlar colesterol, praticar atividade física. Ações e pensamentos influenciam na cura e prevenção das doenças cardíacas.

A afirmação é do cardiologista Álvaro Avezum, cientista, diretor da Socesp (Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo) e coeditor da revista da entidade, que traz em suas páginas o tema “Espiritualidade, Cardiologia Comportamental e Social”, para orientar os cardiologistas na abordagem do assunto com seus pacientes.

Enfrentar de forma positiva as situações adversas do cotidiano, usar sentimentos construtivos e edificantes nos relacionamentos (conjugal, familiar, trabalho e sociedade), tornar-se grato, mais altruísta, ter atitudes solidárias e perdoar não só evitam os males do coração como melhoram a enfermidade se esta já existe, afirma.

Em 2016, em uma lista de 3.216 pesquisadores, Avezum estava entre os quatro cientistas brasileiros com produção acadêmica de maior impacto no mundo.

De acordo com o cientista, estudos epidemiológicos feitos na América do Norte associaram a prontidão à raiva ao diabetes e à insuficiência cardíaca.

Outras pesquisas indicam que a gratidão melhora a evolução clínica de pacientes com insuficiência cardíaca; a disposição ao perdão está associada a menor quantidade de isquemia miocárdica; a taxa de mortalidade por todas as causas é menor quando o propósito de vida é maior.

“Há sentimentos positivos e negativos. Longe de ser filosófico ou religioso, é a maneira de enfrentamento das circunstâncias da vida. Você pode escolher enfrentar com tolerância, gratidão, perdão ou com raiva, ruminação e ressentimentos."

"Esse tipo de reação altera a liberação de alguns hormônios e marcadores como adrenalina e cortisol, por exemplo; eleva a atividade inflamatória (arterosclerose, que é placa de gordura nas artérias, começa com inflamação); aumenta a coagulação no sangue dentro das artérias, causando a trombose e consequentemente eventos cardiovasculares, como infarto e AVC, câncer, doenças autoimunes e outras”, diz Avezum.

“Egoísmo, falta de disposição ao perdão e ressentimento são considerados enfermidades, porque levam ao adoecimento”, completa.

Até pouco tempo, medicina e espiritualidade não conversavam. A percepção da importância da espiritualidade para o tratamento ou cura de doenças levou a medicina a observar mais de perto essa relação. O fato de as duas ciências caminharem juntas foi uma evolução.

Segundo Avezum, no Brasil, nos últimos dez anos, vem crescendo o número de escolas médicas que colocaram na grade curricular o tema saúde e espiritualidade; nos EUA, aproxima-se de 90%.

“Acredito que o alcance da espiritualidade como ferramenta para prevenir adoecimento deverá ter impacto maior em nosso país do que em outros e ainda serviremos de exemplo”, diz o cientista.

Espiritualidade não é necessariamente religião, mas o conjunto de pensamentos, reações e atitudes nos relacionamentos que sejam passíveis de mensuração.

“Tem que ser um guarda-chuva que sirva para toda a sociedade dos quase 8 bilhões de pessoas do planeta”, explica.

“Há um conjunto de evidências indicando que as diversas expressões da espiritualidade têm impacto significativo no bem-estar, associando-se a menores níveis de mortalidade, depressão, suicídio, uso de substâncias e aumento da qualidade de vida”, diz o editor da revista, o cardiologista Marcelo Franken.

É oportuno discutir o assunto durante a pandemia da Covid-19, até porque a solidão e o isolamento social comprometem a saúde mental, aumentam as taxas de mortalidade por todas as causas e fazem mal ao coração. Segundo Franken, deprimidos têm maior incidência de doenças cardíacas.

O estresse, os transtornos de ansiedade e a depressão são cada vez mais corriqueiros no mundo.

Em 2030, a causa número um de morte e incapacitação estará relacionada à saúde mental. “Estamos em rota de colisão porque temos um estilo de vida que adoece”, comenta Avezum.

A orientação da Socesp aos cardiologistas é que a espiritualidade seja abordada nos consultórios, mas a tarefa não é fácil.

Para Avezum, muitos médicos enfrentam incertezas sobre a receptividade das pessoas quanto a essa questão, como a percepção de invasão de privacidade, dificuldades na linguagem da espiritualidade, divergências de crença ou mesmo falta de tempo para a abordagem adequada.

“É fundamental dizer que o médico deve evitar forçar a situação se o paciente não estiver aberto para isso. Nunca prescrever orações e rezas e nem ser conselheiro espiritual, discutir ou discordar das ideias religiosas do paciente. Cabe ao profissional estimular a prática da espiritualidade, explicar ao paciente que é importante e fazê-lo entender que a espiritualidade caminha junto com a ciência. Uma coisa nunca substituirá a outra”, explica Franken.

“Na primeira consulta, num determinado momento, você deve perguntar sobre estresse, ansiedade e depressão. Neste ambiente, pode dar continuidade e investigar como funcionam as situações de perdão e gratidão no seu dia a dia. Se ele permitir, você aprofunda”, orienta.

O cardiologista pode mostrar ao paciente como conduzir sua vida de forma leve e consciente em relação aos sentimentos, além de indicar caminhos terapêuticos em paralelo ao tratamento convencional, como meditação e relaxamento, por exemplo.

“Estamos nos envolvendo cada vez mais em pesquisas para complementar essa visão integral do ser humano na sua responsabilidade do adoecimento e gerar evidências para um dia, modificar para melhor, o binômio saúde e doença”, afirma Avezum.

O cientista também integra o Gemca (Grupo de Estudos em Espiritualidade e Medicina Cardiovascular) da Sociedade Brasileira de Cardiologia. Existente há sete anos, o Gemca evoluiu e é o primeiro departamento de espiritualidade dentro de uma sociedade de cardiologia do mundo. O órgão possui 1.000 cardiologistas filiados, que atuam na divulgação de informações científicas e propostas de pesquisas dentro da área.

Segundo o cardiômetro da Sociedade Brasileira de Cardiologia, em 2020, até 14h desta terça (3), as doenças cardiovasculares mataram 340.117 pessoas no Brasil.

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