Médicos criticam inação de conselhos por não coibir colegas que defendem terapias sem evidência

Para Drauzio Varella, más práticas induzem a tratamentos inadequados e a riscos

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São Paulo

A pandemia de coronavírus expôs uma cisão entre os médicos que se amparam em tratamentos baseados em evidências científicas e defendem a vacinação contra a Covid-19 e outros que seguem recomendando terapias sem comprovação e, agora, se posicionam contrários à imunização.

Como pano de fundo, sobram críticas de profissionais à inação dos conselhos médicos, por supostamente estarem se eximindo de suas responsabilidades regulatórias, permitindo que intervenções sem comprovação científica, como a hidroxicloroquina, a ivermectina e o ozônio retal, sejam amplamente alardeados e defendidos por um grupo de médicos.

Artigo publicado na revista da Sociedade Brasileira de Cardiologia pelos médicos André d'Avila e Marco Vidal Melo diz que, durante a pandemia, inúmeros médicos e instituições adotaram condutas à luz de sua experiência e convicção pessoal.

Kit com hidroxicloroquina contra a Covid-19 distribuído em na Ilha de Marajó em julho
Kit com hidroxicloroquina contra a Covid-19 distribuído em na Ilha de Marajó em julho - Ueslei Marcelino - 25.jun.20/Reuters

“Por vezes, inclusive, meramente convicção política, numa demonstração de desrespeito ao paciente transformado em cabo eleitoral durante a pandemia”, escrevem os autores.

Eles afirmam que os conselhos médicos, salvo algumas exceções, em vez de insistirem em promover o debate e a adoção de condutas baseadas em evidência científica, optaram pela estratégia de “se não fizer mal, pode”.

“Curiosamente, acreditavam estar protegendo o médico com tal atitude. Mas se o consenso subjuga a regulamentação, e se não for possível impor ciência a impressões pessoais, para que conselho?”, questionam.

Segundo eles, intervenções como a hidroxicloroquina e a ivermectina desapareceram completamente do debate científico no resto do mundo, mas a discussão continua atual entre parte dos médicos no Brasil.

“Nesse ambiente de completa desregulamentação, vários colegas optaram por subscrever abaixo-assinados, criar sites promovendo condutas pessoais, escrever cartas a políticos e até organizar caravanas a Brasília para pressionar o Estado brasileiro a adotar condutas médicas por eles defendidas mesmo em face a evidência científica em contrário, ou seja, evidência da ineficácia da intervenção.”

Para eles, se houvesse algum tipo de norma propondo multa ou cassação da licença médica aos que promovem condutas médicas não comprovadas, nada disso estaria acontecendo.

“Tal regulamentação seria, na verdade, semelhante à conduta dos conselhos éticos em casos de charlatanismo, quando atos médicos baseados em decisões consensuais não são aceitos como justificativa para isentar o infrator.”

O médico Reinaldo Ayer, professor de bioética da USP, endossa o artigo e também critica a inação dos conselhos e outras entidades médicas. “Até agora não se manifestaram sobre certos absurdos ditos por médicos.”

De acordo com ele, as poucas manifestações ocorridas não propuseram ações de fiscalização e instalação de processos disciplinares.

“No início, era a pouca importância da ‘gripezinha’ e o seu possível controle com um único medicamento, a hidroxicloroquina. Isso parece ter sido abandonado frente ao crescente número de óbitos.”

Agora, segundo Ayer, o negacionismo está na vacina e na vacinação. “Tenho assistido, enojado, a mesas redondas com médicos e médicas que declaram sem qualquer sustentação que a vacina não vai ser um fator modificador da pandemia. Lástima total”, diz ele.

O médico e colunista da Folha Drauzio Varella entende que essas atitudes dos médicos negacionistas representam uma má prática, que induz a população a tratamentos inadequados e a correr riscos com drogas que não são indicadas.

“No caso da vacina, tinha que ter processo contra esses médicos que falam contra. Tinham que ser punidos, correr o risco de perder o registro profissional porque o mal que esses caras fazem para a população é incomensurável”, afirma.

Varella faz uma analogia à situação do médico que comete um erro no consultório que prejudica o doente. “Ele pode ser processado pelo conselho regional de medicina. E esses que induzem milhares e milhares de pessoas a um erro? Não acontece nada com eles?”

O cirurgião-geral e bariátrico Carlos Schiavon lembra que todos nós temos convicções, sejam elas de caráter religioso, político ou social. “Como médico, quando atendo um paciente, sou obrigado a respeitar essas convicções, mas isso não me dá o direito de prescrever tratamentos que carecem de qualquer embasamento científico.”

Entidades como a ANM (Academia Nacional de Medicina), Sociedade Brasileira de Infectologia, Sociedade Brasileira de Bioética e Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva) fizeram várias manifestações ao longo do ano alertando para os riscos dessas atitudes dos médicos negacionistas, mas pouco surtiram efeito.

O oftalmologista Rubens Belfort Júnior, presidente da Academia Nacional de Medicina, diz que não é possível mais essa situação de médicos darem opiniões sem embasamento científico, e os outros colegas não reagirem.

De acordo com ele, os conselhos de medicina atuais deveriam se mirar na atuação bonita que essas entidades tiveram durante a epidemia da Aids. “Na época, também houve muito negacionismo médico e os conselhos atuaram fortemente contra isso.”

O médico Claudio Reigenhein, professor do eixo de humanidades da Faculdade Albert Einstein, diz que esses comportamentos antiéticos já são vetados no Código de Ética Médico.

“Não pode ser sensacionalista e nem falar com um público leigo sobre medicina não fundamentada em evidência. Os conselhos de medicina precisam combater isso de forma mais enérgica, o que não está acontecendo.”

Segundo ele, é possível que, numa investigação de eventual infração ética, o denunciado apele para o direito à liberdade de expressão. “O médico traz uma garantia dessa profissão. Tem que ter limite. Liberdade de expressão não pode fazer mal para uma pessoa.”

Procurado, o CFM (Conselho Federal de Medicina) preferiu não se manifestar sobre o assunto.

O embate não é exclusivo do Brasil. Em artigo recente no New York Times, o psiquiatra Richard A. Friedman lembra que, normalmente, médicos desonestos chamam a atenção do conselho médico de seu estado apenas porque um paciente faz uma reclamação formal ao conselho.

Mas, segundo ele, todos os conselhos deveriam ter autoridade por lei para iniciar uma investigação de um médico perigoso quando o paciente em questão é a nação.

“Indiscutivelmente, o dano causado por um médico que conscientemente divulga informações médicas enganosas pode ser muito mais perigoso do que qualquer coisa que ele ou ela faça em um único paciente.”

Tanto nos EUA quanto no Brasil não há relatos de que um médico tenha perdido sua licença por espalhar desinformação. Alguns estados americanos, porém, já começam a agir.

O conselho médico do Oregon suspendeu recentemente a licença de um médico que se gabava em vídeo de não usar máscara em sua clínica.

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