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Pandemia e descuido forçam pais a escolher filhos para receber em casa no Natal

Crescimento dos casos também causa um efeito colateral nas famílias: ciúmes dos irmãos escolhidos

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São Paulo

Os quartos que um dia foram dos filhos continuam exatamente do mesmo jeito que deixaram quando saíram para o mundo. Cama, guarda-roupa, mural de fotos das “duas meninas e um menino”, está tudo lá. “Ih, dá um trabalho manter assim...eu que sei”, diz Francisca das Chagas, 66, a mãe. Na casa ajardinada e grande vivem hoje apenas ela e o marido, Antônio Serapião da Silva, 71, o pai.

Trabalho dá, mas vale a pena. Ajuda Francisca a lembrar da sensação de ter Eduardo, 39, Fernanda, 37, e Amanda, 36, em casa. Sentimento que se renova e ganha ainda mais força a cada festa de família, a cada Natal. Filhos, nora, genro, netos, tios, primos, amigos se juntam na sala de Francisca, num entra e sai se fim. Casa de mãe, de avó, deveria ser sempre assim.

Não neste ano. A pandemia do novo coronavírus que manteve os pais sem colocar o pé pra fora da casa, em Ermelino Matarazzo, na zona leste paulista, deu conta também de obrigar Francisca a tomar uma decisão amarga: escolher qual dos filhos vai passar o Natal na casa da família.

Até esta terça-feira (23), o Brasil tinha quase 190 mil mortes registradas por Covid-19 e 7.366.677 de pessoas infectadas desde o começo da pandemia. A média de mortes nos últimos sete dias é de 777, aumento de 21% em relação a 14 dias atrás. É a maior média desde as primeiras semanas de setembro.

“Eles não receberam muito bem, não. Acabam achando que a mãe gosta mais de um do que do outro. Mãe gosta tudo igual. Pode ter 10 filhos, o amor é o mesmo. Mas, ciúmes sempre tem”, diz Francisca.

Eduardo, empresário, e Amanda, psicóloga, estão casados. Fernanda, jornalista, mora sozinha. A solução: cada um em sua casa e apenas um na casa dos pais. “O menino não estava se cuidando muito. Dizia que [a pandemia] já tinha acabado. Mas, agora que voltou, ele está se cuidando, só vem aqui de máscara”, diz a matriarca. “Amanda é um amor, super carinhosa. Ela entendeu que não pode ficar todo mundo junto.”

Logo, a escolhida foi a filha do meio. “É difícil para mim também, não posso deixar a Fernanda sozinha. É a única que mora só”, diz. Assim como Francisca, que tem problemas respiratórios, Fernanda também faz parte do grupo de risco. Uma hipertensão pulmonar faz com que a saturação de oxigênio em seu corpo não seja a ideal.

“Tem gente que pega e não tem nada. Outros são internados e não resistem uma semana. O que mais me angustia é esse medo. De qual grupo sou eu nessa pandemia?”, diz Fernanda.

Seja como for, a notícia da escolha não caiu lá muito bem entre os irmãos. Isso, claro, na percepção de Fernanda. “Eles falam: ‘Ah, mas a Fernanda vai no shopping, vai no mercado’. Realmente eu vou, mas vou porque tenho que ir. Ontem mesmo fui na farmácia de alto custo do SUS porque tomo um remédio caro”, diz a filha do meio. “Mas, eu não vou em bares, restaurantes e nem fico recebendo pessoas na minha casa desde o início da pandemia...”

Para bom entendedor (a)....

“Eu me cuido”, garante Eduardo, 39. “Quando vou na casa da minha mãe fico só na garagem, e de máscara.”

Ele afirma que a escolha da mãe é completamente compreensível e que nele não causou nenhuma reação parecida com ciúmes. “Não tenho ciúmes nenhum. Já comprei champanhe, vinho, e vamos fazer uma ceia diferente neste ano. Vou ficar em casa”, diz. “Eu moro perto da minha mãe e sempre vejo ela.”

Mesmo assim, ele admite que ficou chateado com a situação causada pela pandemia, não pela escolha da mãe. “Estamos acostumados a fazer a mesma coisa todo ano, o mesmo ritual. Então, claro, neste ano é chato saber disso”, afirma.

Que é chato, a infectologista Raquel Stucchi, da Unicamp, e consultora da Sociedade Brasileira de Infectologia, concorda. Segundo ela, no entanto, a medida é mais do que necessária, e pode ser a única forma de não termos um Natal marcado por mais casos de Covid-19 e que entrará para a história como o mais triste de todos. “Não é o momento de visitarmos os parentes. Essas reuniões só poderiam acontecer se fossem com um número menor de pessoas e só se fossem em um local aberto”, diz.

Mas é possível escalonar as visitas para diminuir o risco de contágio? A infectologista afirma que se todos fizessem o PCR, teste que indica a contaminação pelo novo coronavírus, e depois de fazer isso se mantivessem em isolamento social até o dia do Natal, talvez. “Mas o quanto isso é factível é difícil de dizer”, afirma. “Eu teria muita preocupação.”

Neste mês, ela gravou um vídeo para suas redes sociais em que faz um apelo para que as pessoas evitem as festas, mesmo as de família. Raquel se emocionou na gravação e sua voz se embarga ao fazer o pedido. “Acompanhei a internação da filha de um amigo durante 14 dias...E já são dez meses vivendo isso...é muito desgastante”, desabafa.

Francisca sabe bem disso e se nesta quarta-feira (24) apenas uma das filhas estará com ela e o marido, não será sem dor.

Segundo Fernanda, a morte da atriz Nicete Bruno, na semana passada, que contraiu o vírus de uma pessoa próxima, mexeu com sua mãe. “Isso abalou muito minha mãe. Ela já estava meio assim, depois que viu a morte da Nicete ficou ainda mais. Aí que eles resolveram que seria melhor ficar cada um em sua casa”, diz.

“É tudo muito perigoso. Não dá para receber todo mundo. Mas paciência. Natal teremos muitos para comemorar”, afirma a matriarca. “Minha preocupação, além dessa doença, é que ninguém fique chateado.”

Fernanda diz que os irmãos não gostaram da decisão. Francisca diz que o ciúmes grassou entre eles. Eduardo garante que para ele, ok. Mas e Amanda?

“Entendeu bem. Ela é um amor. Disse que entendia”, afirma a mãe.

Já a irmã não tem lá toda essa certeza. “Ela é muito colada com minha mãe, liga pra ela todo dia, é até chata de tanto que liga”, diz Fernanda, como quem não quer nada – menos ainda colocar lenha na fogueira. ”Mas pode colocar aí que eu falei isso. Ela não se conformou, não. Mas o problema maior acho que é meu irmão que antes não estava se cuidando.”

Seja como for e onde estiverem os irmãos nesta noite, um ponto terão em comum. O único desejo possível é que nunca mais um ano e um Natal assim se repitam nesta e em qualquer família.

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