Ultrapassada a novela sobre a eficácia da Coronavac, a guerra da vacina entre o governador João Doria (PSDB-SP) e o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) agora se volta à corrida pela "foto".
No caso, a fotografia de quem fará a primeira inoculação com um imunizante contra a Covid-19 no Brasil: o governo paulista ou o federal, rivais em todos os níveis possíveis, de olho na disputa de 2022.
A colocação pode parecer irônica, dado o histórico de negacionismo da gravidade da pandemia e de levantar suspeitas sobre vacina de Bolsonaro. Mas não é.
Mas até os passarinhos do Palácio do Bandeirantes já perceberam que Brasília detectou o ânimo, ao menos entre a opinião pública informada, acerca do desejo por um imunizante contra a peste que matou quase 200 mil brasileiros em menos de um ano.
Assim, com o mistério da Coronavac desfeito, Doria busca agora fugir de uma armadilha involuntária nessa disputa —presidenciável, o tucano tem tido uma atuação na pandemia que busca o alinhamento à ciência, numa oposição ao negacionismo de Bolsonaro que ficou evidente já num embate virtual em março.
Ao anunciar o Plano Estadual de Imunização, em dezembro, o tucano jogou o governo federal nas cordas. Deu uma data, o aniversário da cidade de São Paulo em 25 de janeiro, como marco para começar sua imunização.
Armou-se de opções para forçar, inclusive por meio de uma azeitada articulação com o Supremo Tribunal Federal se necessário, a aprovação mais rápida possível para a vacina chinesa feita em conjunto com o Instituto Butantan.
De lá para cá, foram vários desembarques de doses e de insumos da Coronavac acompanhados por autoridades, as faixas de "vacina do Brasil" em contêineres. Tudo parte do jogo.
Mas tanto Doria quanto sua equipe desde o começo deixaram claro que o objetivo final era fazer Brasília se mexer e incluir a Coronavac, em que o governo federal não colocou um tostão, no Programa Nacional de Imunização.
O objetivo foi logrado, e Doria pode cantar vitória pela aposta na Coronavac, mas há uma questão: se o Ministério da Saúde comprar as 100 milhões de doses que diz que vai da vacina, isso incluirá as até 60 milhões que o tucano conta ter em solo paulista até março.
A lógica é que elas serão vacinas "do governo federal", por assim dizer, ainda que na ponta sejam estados e municípios que as administram. O sinal amarelo no entorno político do tucano foi óbvio: o ministro Eduardo Pazuello (Saúde) teria a palavra final sobre o imunizante?
A resposta instintiva do governador, segundo interlocutores, foi não. A ordem é tentar obrigar algum arranjo que permita a São Paulo liberdade.
Técnicos da área de saúde acham bastante difícil que esse acerto ocorra, pois é exatamente o contrário com todos os outros imunizantes. O texto do acordo negociado é claro neste ponto.
E o Butantan, por sua vez, teme a bola dividida, já que sua receita vem em grande medida do fornecimento de vacinas para o Sistema Único de Saúde.
Pazuello afirmou ontem que o acordo "está assinado", mas na realidade ele só havia sido enviado por São Paulo. Chegou ao estado apenas às 19h. Ainda falta, também, a assinatura paulista.
Doria, em entrevista à Globo News, contemporizou e ganhou tempo, dizendo que não sabia os termos de "distribuição equitativa" a que o ministro se referia, e lembrou que São Paulo é o estado mais atingido pela pandemia.
O tucano, por outro lado, reitera sua vontade de nacionalizar ao máximo a Coronavac, de acordo com o que sempre disse e em linha com sua ideia de tornar-se conhecido nacionalmente para 2022. É uma linha estreita aquela na que ele se equilibra.
Voltamos aqui à "foto". Doria já tem hoje 11 milhões de doses da Coronavac à mão. Otimistas no governo estadual acham que a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) poderá liberar a aplicação da vacina já na semana que vem.
Isso daria muitos dias até a data do plano estadual, 25 de janeiro. Como Pazuello tem dito com frequência cada vez maior que está pronto para uma vacinação a partir de 20 de janeiro, os gatilhos estão todos acionados no Palácio dos Bandeirantes.
As relações, que chegaram a um ponto baixo extremo quando a Anvisa vetou sem avisar o Butantan a parte brasileiro do estudo de fase 3 da Coronavac, agora parecem bem mais apaziguadas.
As acusações mútuas cessaram na área técnica. O tucano também baixou a fervura de sua disputa direta com Bolsonaro, mantendo críticas mais pontuais. Cenas dos dois se enfrentando via teleconferência, duelo que marcou a fase inicial da pandemia em março de 2020, não devem se repetir tão cedo.
Na visão paulista, a batalha da vez é a da fotografia da inoculação. Assessores de Doria citam o exemplo chileno, que começou uma modesta campanha de vacinação até aqui, mas colheu os louros de estar na vanguarda regional: a pressão popular cai, o ânimo muda.
Há o fato adicional de Doria ter um arsenal atômico à mão, as tais milhões de doses. Mesmo que fosse entregá-las todas para Pazuello, o poderia fazer de forma altamente teatral, enfatizando o papel paulista no combate nacional à Covid-19.
O desespero em Brasília quando os indianos que produzem a vacina preferida do governo federal, da AstraZeneca/Universidade de Oxford, disseram que poderiam vetar a exportação ao Brasil evidencia essa corrida.
Há um aspecto a considerar. A vacina de Oxford ainda não teve seu pedido de uso emergencial usado pela Anvisa. Isso transformará a corrida pela "foto" uma disputa lance a lance, talvez decidida no olho mecânico.
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