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Vi inferno em hospital e solidariedade em caça alucinante por oxigênio em Manaus

Na ausência de oxigênio, famílias se apegaram às orações, só interrompidas pela chegada do gás essencial

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Manaus

Era manhã do dia 14, uma quinta-feira deste janeiro de pandemia. As atenções da Redação da Folha estavam voltadas para uma pergunta que ainda não tinha resposta: quando começaria a vacinação contra a Covid-19 no país?

Mas o choro doído de uma manauara ganhou eco e fez as atenções do país se voltarem a ela e aos seus conterrâneos. Aos prantos, a mulher fez um primeiro alerta num vídeo que caiu nas redes sociais.

“Peço a misericórdia de vocês. Estamos numa situação deplorável. Simplesmente acabou todo o oxigênio de uma unidade de saúde. É muita gente morrendo.” O caos no sistema de saúde da capital do Amazonas já estava instaurado ali. Um pesquisador, em choque, classificou os hospitais locais como “câmaras de asfixia”.

Largadas à própria sorte, equipes de enfermagem passaram a ambuzar os pacientes, um procedimento de respiração manual que as exauriu e as deixou em frangalhos a cada novo óbito contabilizado pela falta de ar.

Era preciso contar essa história dando o tamanho da dimensão que ela tinha. E foi o que a reportagem da Folha fez ao desembarcar em Manaus na madrugada do dia seguinte, na sexta-feira (15).

Já dentro de um táxi, a caminho do hotel, ouvi do motorista: a cidade inteira está de pernas para o ar. As palavras dele deram o termômetro do que eu encontraria horas depois na mesma unidade em que a moradora pediu socorro pela internet.

Numa outra frente de cobertura, a repórter Monica Prestes tabulava dados, ouvia autoridades e buscava respostas para explicar o caos.

Diante do Serviço de Pronto Atendimento da Redenção, bairro da região centro-oeste da cidade, encontrei Eliane em completo transe orando pela cura do marido, internado por Covid-19 na emergência da unidade.

Num gesto de fé, Eliane assoprava com toda a força o ar que havia em seus pulmões na direção da emergência. “Senhor, encha os pulmões dele”, pedia. Outra parente do internado gritava que o oxigênio que o homem tanto necessitava viria de Deus.

O culto improvisado no local só terminou quando se ouviu o grito de um homem no portão de entrada do serviço de saúde. Ele só disse: ei, chegou!

Uma correria desesperada tomou conta de todos ali. O que havia chegado eram dois cilindros verdes cheios de oxigênio hospitalar —10 m³ cada um. Parentes dos pacientes se juntaram aos funcionários da unidade e carregaram sobre os ombros os dois suprimentos até a emergência.

Muito atento, já estava com o celular engatilhado na mão e pronto para filmar a cena de arrepiar que se repetiria múltiplas vezes pelos hospitais de Manaus. Foi ali que eu vi surgir um movimento espontâneo entre a população cujo slogan era: todo manauara é um voluntário.

Descrentes em relação ao governo local, chamado de omisso e assassino, os moradores encabeçaram uma força-tarefa em busca do impossível: achar oxigênio.

As fábricas que produziam o insumo operavam no limite, e fora delas o que se via era uma fila interminável de pessoas com cilindros vazios em busca do sonhado oxigênio.

Só o cilindro vazio já custava cerca de R$ 5.000. O cansaço, o calor amazônico e a tensão me fizeram, por alguns minutos, ficar sentado na sarjeta para um descanso rápido.

Não vi aquela gente arredar o pé da fila, porém. Só saíram dali quando a PM disse que eles precisavam ir para a casa. Era o toque de recolher.

No dia seguinte, no sábado (16), a missão era entrar num hospital público muito afetado pela crise. Com a ajuda da irmã de um paciente que havia acabado de receber alta, entrei sem problemas no setor de internação só para pacientes com Covid-19 do Platão Araújo, hospital da zona leste da cidade.

Só a entrada sem problemas já mostrou o colapso pelo qual passa o sistema de saúde manauara. Do lado de dentro, um inferno. Pacientes espremidos em salas de observação e nos corredores eram abanados com pedaços de papelão por seus acompanhantes

Os aguerridos profissionais de saúde tentavam pôr ordem ao caos que, ainda hoje, segue sem rédeas levando milhares às covas dos cemitérios.

Colaborou Monica Prestes

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