Descrição de chapéu Coronavírus

Entenda os desafios para o Brasil enfrentar a pandemia após 250 mil mortes por Covid

Especialistas de diferentes áreas listam as soluções aos problemas gerados no primeiro ano da crise sanitária

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Gonçalves (MG)

Arrumar a casa depois de 250 mil mortes por Covid-19 não será tarefa fácil ao Brasil.

A pandemia ainda nem completou um ano, e o país se vê no pior momento da crise sanitária, com variantes do coronavírus circulando em todas as regiões.

O vírus tem ganhado território colapsando as estruturas de saúde dos estados e forçando o fechamento de grandes cidades diante de uma gestão atabalhoada da imunização.

A Folha encaminhou uma pergunta para especialistas e representantes da sociedade civil organizada sobre os erros cometidos na gestão da crise até aqui.

Os especialistas também foram desafiados a propor soluções para os problemas mais significativos gerados pela pandemia em suas áreas de atuação.

Confira, abaixo, as análises dos impactos da pandemia em algumas áreas.

Saúde pública

"Nesses quase 12 meses de pandemia, o que mais impactou a saúde pública foi a dificuldade de reestruturar o SUS (Sistema Único de Saúde) para enfrentar a Covid-19. Essa dificuldade foi muito alarmante no princípio da pandemia, em março de 2020, mas continua sendo notada nos dias de hoje.

Acredito que a APS (Atenção Primária à Saúde) foi a mais negligenciada nesse reordenamento do sistema. Optamos por direcionar esforços para enfrentar a pandemia por meio dos hospitais, em detrimento do estabelecimento de um enfrentamento comunitário, que deveria ter a atenção primária como protagonista. Em grande medida, essas falhas geradas no combate à Covid-19 passam pelo esvaziamento do papel de coordenação do sistema, exercido pelo Ministério da Saúde até então.

No lugar do arranjo federativo instituído em temas de saúde, caracterizado por forte capacidade de coordenação de políticas pelo Executivo, foi estabelecida a atuação descoordenada de estados e municípios. Essa atitude vacilante e contraditória do governo central colocou o país num vazio decisório e empurrou os governadores e prefeitos para a ação. A decisão recente do STF com relação à compra de vacinas pelos entes subnacionais tem relação direta com essa nova dinâmica estabelecida ao longo da pandemia.

Michelle Fernandez, professora e pesquisadora no Instituto de Ciência Política da UNB, pesquisadora do núcleo de estudos da burocracia da FGV e pesquisadora-colaboradora do Instituto Aggeu Magalhães/Fiocruz

Educação

"A pandemia gerou efeitos brutais na educação, agravados pela falta de coordenação nacional, que cabia ao MEC (Ministério da Educação).

A ausência de atuação do governo federal e a heterogeneidade de esforços de estados e municípios ampliou ainda mais a desigualdade educacional. Muitos ficaram sem aprender, sem alimentação digna e com desenvolvimento físico, social e emocional insuficiente.

O esforço é restaurar o vínculo dos alunos com a escola, implementar ações intensivas de recuperação escolar e retomar uma agenda de políticas públicas estruturantes para elevar a qualidade da educação pública.

A missão exige liderança, capacidade de gestão, planos de longo prazo e financiamento. Nesse último caso, iniciativas oportunistas como a desvinculação de recursos para a educação, como prevê o relatório preliminar da PEC Emergencial, do senador Márcio Bittar, apontam o contrário.

A pandemia e o grave quadro fiscal não podem justificar redução do investimento na educação, sobretudo com a necessidade de conter os danos causados pela epidemia e incompetência do MEC.

Priscila Cruz, mestre em administração pública pela Harvard Kennedy School (EUA), é fundadora e presidente-executiva do movimento Todos Pela Educação

Comunidades Quilombolas

"O impacto mais feroz é a perda de vidas humanas e com elas as memórias e as histórias da resistência dos quilombos.

A pandemia serviu para demonstrar o nível de exclusão ao qual as comunidades quilombolas são submetidas. Existe uma ausência total de políticas de saúde para os quilombolas, cuja maioria vive no campo e em áreas de difícil acesso.

A pandemia também afetou a subsistência da população quilombola, impedida de comercializar seus produtos em feiras organizadas e exposta ao vírus ao sair de suas comunidades para tentar sobreviver. Isso se deve a ausência de autonomia dos quilombolas sobre seus territórios que, em sua maioria, não são regularizados.

Pensando nas relações sociais, políticas, culturais e econômicas, a pandemia atravessou toda a comunidade, afetando inclusive a forma como lidamos com nossos costumes com a vida e a morte.

E como mudar? Olhando para problemas anteriores à pandemia, como falta de acesso à água potável, saneamento, serviços de saúde e a negação do direito ao território, que são reflexos do racismo institucional, pois somos os últimos a receber os benefícios de viver em sociedade.

Givânia Silva e Biko Rodrigues, da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq)

Saúde Mental

"A maioria de nós não sabe lidar com as perdas. O ser humano tem como característica achar que pode dominar todos os setores da vida; temos medo de não saber o que vai acontecer no futuro.

A raiz desse medo é muito mais profunda, até metafísica. Nós nos separamos da sabedoria do passado e nos apegamos ao materialismo imediato, nos tornamos egoístas. A vida deixou de ser sagrada para se tornar algo material.

Assim, não conseguimos mais lidar com as coisas naturais da vida, como dores, sofrimentos e mudanças nem mesmo com a própria morte, que é a nossa única certeza. E o medo da impermanência é exatamente o que aflige o homem moderno.

Então, a maior causa do adoecimento mental durante essa pandemia é quando o indivíduo se depara com uma situação fora do seu controle.

Isso gerou um estresse prolongado que já dura um ano. É preciso valorizar o tratamento de transtornos neuropsiquiátricos. Acho que o mais importante é nos livrarmos do estigma em torno da saúde mental. Se nós vencermos esse preconceito, criaremos um panorama muito mais saudável para toda a sociedade.

Gesika Amorim, neuropsiquiatra, pós-graduada em psiquiatria e neurologia clínica e pediatra com ênfase em saúde mental e neurodesenvolvimento infantil

Ciência e Tecnologia

"O Brasil mesmo antes da pandemia vinha vivendo a negação da ciência por parte da sociedade –infelizmente, para muitos, a Terra é plana e a evolução das espécies dá lugar à intervenção divina. Esse descrédito e o pensamento equivocado ficaram exacerbados e atingiram parte do poder público.

Medicações já comprovadas como ineficientes no combate ao coronavírus e prejudiciais à saúde passaram a ser recomendadas e até financiadas pelo Estado brasileiro em detrimento de ações fortes e incisivas para conter a pandemia —ações que vão desde medidas simples como respeitar e encorajar o uso de máscara e o distanciamento socia às mais complexas, como contratação e financiamento adequado do Sistema Único de Saúde, orgulho da Constituição democrática de 1988, já vilipendiada e agora ainda mais ameaçada pela chamada PEC Emergencial, a 186/2019.

A pandemia escancarou e ampliou a desigualdade social do Brasil. As ciências –das mais diferentes áreas do conhecimento– associadas à inovação e tecnologia são a única chance de reconstruir o país.

É necessário construirmos um novo pacto suprapartidário, mobilizando todos os poderes e as diferentes esferas da sociedade em todos os níveis. Um pacto em favor da sociedade do conhecimento, pautado na educação e ciência e capaz de enfrentar a nociva onda de notícias falsas e desinformação que continuam sendo disseminadas país afora.

Helena Nader, docente da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e vice-presidente da Academia Brasileira de Ciências

Mundo do Trabalho

"A taxa de desemprego e de inatividade bateram recordes nesse primeiro ano de pandemia. Com perspectivas ruins de emprego, muitos trabalhadores ficaram desalentados.

Averiguamos um aumento do percentual de trabalhadores por conta própria, que pode ser reflexo do aumento do desemprego e da falta de oportunidades para retorno ao mercado formal.

Alguns grupos de trabalhadores têm sofrido mais com o desemprego; o trabalho doméstico remunerado apresenta um nível recorde de desocupação.

Também observamos maiores taxas de desemprego para os trabalhadores menos qualificados e jovens. As mulheres também foram mais afetadas pelo desemprego e pela inatividade, com as medidas de isolamento, o fechamento das escolas e a desigualdade na divisão das tarefas domésticas.

Com a vacinação, é possível que ocorra uma melhora gradual da demanda por trabalho e criação de novas vagas. Para os jovens, é preciso pensar em políticas de apoio no retorno ao mercado de trabalho e de acesso a crédito estudantil.

Solange Gonçalves, pesquisadora e integrante do GeFam (Grupo de Estudos em Economia da Família e do Gênero)

Cultura

"A cultura foi o primeiro setor atingido pela pandemia e pode ser o último a ter as autorizações necessárias para retomar sua plena potência.

O impacto foi tremendo –números de associações do setor falam em mais de 60 mil empresas e 6 milhões de empregos diretos e indiretos no país todo, cerca de 5% do PIB, em risco nesses últimos 12 meses. Só o Carnaval movimentou R$ 2,75 bilhões na cidade de São Paulo em 2020.

A cultura precisa ocupar a centralidade do desenvolvimento econômico e social do país, o mesmo papel estratégico que já ocupa na vida das pessoas. Não podemos imaginar, afinal, enfrentar uma quarentena sem a presença contínua de séries de TV, filmes, livros, peças de teatro virtuais, exposições online e músicas nas nossas vidas.

O setor cultural demonstrou grande consciência cívica no último ano ao entender a necessidade de suspender uma de suas expressões centrais: o poder de reunir pessoas.

Temos agora uma oportunidade de ouro de pensar no futuro, em 2022, com a celebração do centenário da Semana de Arte Moderna, o momento que pode unir a retomada cultural com esse reencontro de São Paulo com valores modernistas e com a valorização dos novos modernistas que estão espalhados pelas periferias da cidade.

A cultura é uma saída justa, próspera e democrática para nossa crise contemporânea, e o Brasil pode ser uma potência global da cultura e da economia criativa.

É preciso colocar a cultura no centro do debate público nos próximos meses, numa cruzada da civilização contra a barbárie, do pensamento contra a estupidez e em defesa da liberdade e da democracia.

Alê Youssef, secretário de Cultura da cidade de São Paulo

População Trans

"Seja pelas ações do governo ou ausência delas, levou-se muito tempo para uma resposta efetiva à Covid-19, e as crises que vieram junto da sanitária têm se somado as epidemias de violência, abandono, omissão e morte que já vivia a população trans.

A violência direta que já era alta manteve o Brasil em 2020 como o país que mais assassina pessoas trans do mundo, de acordo com a ONG Transgender Europe, com um aumento de 43% no número de assassinato de pessoas trans em relação a 2019.

Houve ainda a paralisação dos serviços de saúde específica das pessoas trans, que já padeciam de falta de estrutura e investimento, com redução em até 70% dos procedimentos nesse período de pandemia.

Diante do cancelamento das visitas, as pessoas trans em privação de liberdade voltaram a enfrentar o risco aumentado de violações de direitos humanos, como estupros e violência sexual. Muitas das pessoas trans vivendo com HIV e/ou que compõem o grupo de risco para a Covid tiveram negados os pedidos de mudança do regime para o cumprimento de prisão domiciliar.

De acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), cerca de 70% da população trans não teve acesso a qualquer medida de apoio durante a pandemia.

Algumas das medidas necessárias são o acolhimento das pessoas trans que tiveram perda nas suas rendas, foram expulsas de casa ou estão em situação de rua, a formação de equipes de saúde para enfrentar o despreparo médico para questões trans, ajustar as condutas governamentais para resolver as questões em torno da dificuldade de acesso às politicas emergenciais, a inclusão de representações trans na construção de políticas públicas e gabinetes de crise e a retomada dos atendimentos previstos nos ambulatórios e hospitais que atendem o processo transexualizador do SUS são algumas medidas necessárias.

Bruna Benevides, militar da Marinha, mulher trans, feminista e pesquisadora da Associação Nacional de Travestis e transexuais (ANTRA)

População de rua

"A pandemia de Covid-19 levou mais mulheres com filhos para as ruas da cidade de São Paulo. Também é perceptível uma nova onda migratória de pessoas de outros estados por aqui.

A demanda pelos serviços assistenciais vê, neste momento, um recrudescimento no número de voluntários, porque muita gente integra o grupo de risco para a Covid-19.

A população de rua não para de crescer. É só circular pela cidade que vocês verão o aumento brutal do número de barracas sobre calçadas, sob viadutos e espalhadas pelas praças.

A pandemia só potencializou os problemas que já existiam nessa população. A violência, a arquitetura hostil da cidade e os problemas de saúde mental pioraram.

Muitos ficaram mais depressivos porque as perspectivas de vida inexistem. A gente percebe isso no comportamento deles. Mesmo com a comida na mão, eles não comem.

Além de tudo isso, existem os temores da pandemia, com uso de máscara e de uma higiene e distanciamento social impossíveis de serem praticados por quem não tem teto.

Essa gente precisa de proteção digna, com locação social, auxílio aluguel, residências terapêuticas e repúblicas, mas voltadas a pequenos grupos, para o estímulo de laços e da autonomia.

Padre Júlio Lancellotti, da Pastoral do Povo de Rua da Arquidiocese de São Paulo

Gestão dos municípios

Os municípios sofrem há anos pelo desequilíbrio no pacto federativo, situação que se agravou durante a pandemia e reforçou as desigualdades sociais no país. Além das milhares de vidas perdidas, os entes locais enfrentam a alta na demanda de serviços essenciais em áreas como assistência social e saúde.

Na educação, o desafio foi implementar medidas para preservar a saúde dos alunos e garantir o ano letivo. Esse cenário tende a ser mais grave em 2021, diante de uma situação sanitária ainda mais crítica e da queda de receitas prevista.

Para a Confederação Nacional de Municípios (CNM), são necessárias medidas inadiáveis para possibilitar que o país volte a se desenvolver social e economicamente.

Primeiramente, é necessário e urgente vacinar a população de forma equânime em todo o país por meio do Plano Nacional de Imunização (PNI). É fundamental também aprovar matérias que garantam o enfrentamento da pandemia, a exemplo do auxílio emergencial à população mais vulnerável, além de outras essenciais à economia brasileira, como a reforma tributária.

Glademir Aroldi, presidente da Confederação Nacional de Municípios

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