Descrição de chapéu Coronavírus

Rio tem 222 pessoas à espera de leito de UTI para outras doenças

Pandemia deixa rastro de desassistência de outras patologias, com queda de cirurgias e aumento da mortes cardiovasculares

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Rio de Janeiro e São Paulo

Até o sábado (6), o autônomo Maurício Costa, de 55 anos, engrossava uma macabra fila: a dos 222 pacientes não Covid à espera de um leito de UTI no Estado do Rio de Janeiro. No dia 30, uma semana antes, ele passou muito mal.

Com febre alta e convulsões, foi encaminhado à sala da vermelha da UPA (Unidade de Pronto Atendimento) do Engenho Novo, na zona norte do Rio. Descartado o diagnóstico de Covid-19, os médicos tentaram por dois dias debelar a crise.

Sem sucesso, solicitaram a transferência para uma unidade de tratamento intensivo. A suspeita era de meningite. Uma assistente social recomendou que a família recorresse à Justiça para garantir sua internação.

Irmã de Maurício, a serventuária Armanda Costa entrou com um pedido de liminar, concedida horas depois, para a internação em um hospital na rede pública logo que houvesse uma vaga. Passadas oito horas sem resposta, entrou com novo pedido, indicando como alternativa três hospitais da rede privada.

Tarde demais. Com agravamento do quadro, os médicos já desaconselhavam a transferência, explicando que o paciente sobrevivia às custas de aplicações de doses de adrenalina.

“O médico disse que só um milagre salvaria meu irmão”, conta Amanda. Maurício Costa morreu às 11h do sábado, sendo sepultado no dia seguinte.

Desde a semana passada, permanece em 222 o número de pacientes à espera de um leito de UTI no Rio. Segundo dados da Secretaria Estadual de Saúde, encaminhados diariamente à Defensoria Pública, esse número é 45% maior do registrado no fim de maio de 2020, quando a média diária de novos casos superava 17.447 e 153 pessoas esperavam por uma vaga em UTI.

Coordenadora do Núcleo de Saúde e Tutela Coletiva da Defensoria Pública do Rio, Thaísa Guerreiro afirma que o sistema de saúde do estado empacou diante de um gargalo imposto pela pandemia da Covid-19.

Segundo ela, não foi cumprido o plano estadual de contingência para atendimento de infectados com o coronavírus e, para suprir essa carência, foram usados os leitos reservados a pacientes com outras enfermidades.

“É preciso deixar claro que que já tinha uma deficiência de vagas em UTIs”, afirma Guerreiro, citando um estudo da Secretaria Municipal de Saúde do Rio segundo o qual, de 2014 a 2018, a cidade perdeu 889 leitos cirúrgicos, representando 22,9% de redução. Em 2018, o déficit de leitos de UTI de adultos era de 263.

Guerreiro relata que, na esperança de obterem uma vaga sem necessidade de ir à Justiça, nem todos pacientes inscritos no Sistema Estadual de Regulação chegam a recorrer à Defensoria.

Foi o caso da dona de casa Lourdes Cascado Alvarenga, de 82 anos. Vítima de um enfarte, foi internada no dia 21 de janeiro na UPA da Taquara, na zona Oeste do Rio. Por determinação médica, foi incluída na lista de espera para que fosse submetida a um cateterismo. Não resistiu. Morreu na sexta-feira (29).

Ano passado, a Defensoria entrou na Justiça para que fossem colocados em operação todos leitos previstos no plano estadual de contingência. Após alterações sofridas pela plano, como a exclusão de hospitais de campanha, a Defensoria solicitou, então, a apresentação de um programa de compensação desses leitos na rede.

"Isso porque tínhamos muito leitos não Covid convertidos para Covid, impactando no aumento da fila de espera. E porque poderíamos ter um novo repique de casos, o que efetivamente aconteceu", diz Guerreiro.

Nessa ação civil pública, a Defensoria também solicitava ao governo informações sobre estrutura à disposição para pacientes com Covid-19, com especificação de novos leitos e os pré-existentes convertidos para combate à pandemia. Mas o pedido foi negado.

Procurada há uma semana por e-mail, a Secretaria de Saúde não respondeu, até a noite desta segunda (8), a perguntas sobre internação de pacientes que não estão com Covid-19. Procurada na sexta-feira (5), a Prefeitura do Rio também não deu resposta.

Em São Paulo, a Secretaria de Estado da Saúde informa que tem conseguido garantir assistência hospitalar a todas as patologias consideradas de urgência e emergência, além da Covid-19.

Diariamente, a Cross (Central de Regulação e Oferta de Serviços de Saúde) recebe em torno de 2.700 solicitações de regulação de urgência, sendo cerca de 20% casos de Covid-19. Outras especialidades com maior demanda são ortopedia (320/dia), neurologia (170), pediatria (150) e cardiologia (110).

O SUS em SP mantém 4.900 leitos de UTI durante a pandemia, que se somaram aos 3.500 pré-existentes. Também foram ativados 3.000 novos leitos clínicos, somando-se a outros 16,2 mil pré-pandemia.

A secretaria diz que solicitou ao Ministério da Saúde a habilitação da integralidade de leitos de UTI para Covid-19, mas, até o momento, o órgão federal está custeando apenas 564 leitos, representando 11% do total de leitos extras ativados na pandemia.

A pandemia tem deixado um rastro de desassistência de outras doenças no país, com queda de exames, procedimentos e cirurgias, aumento da taxa de letalidade em hospitais e de mortes cardiovasculares em casa.

As internações por AVC (Acidente Vascular Cerebral) e doenças hipertensivas, por exemplo, caíram 12% e 33%, respectivamente, nos meses iniciais da pandemia, segundo estudo da SBC (Sociedade Brasileira de Cardiologia).

Ao mesmo tempo, uma outra pesquisa da SBC feita em seis capitais (São Paulo, Rio de Janeiro, Fortaleza, Recife, Belém, Manaus) mostra um excesso de mortes cardiovasculares em 2020, nas cidades menos desenvolvidas, possivelmente associado ao colapso do sistema de saúde de saúde.

Também houve aumento nas mortes cardiovasculares não especificadas (sem um diagnóstico correto) em casa, possivelmente resultado da falta de acesso aos cuidados de saúde.

Segundo Marcelo Queiroga, presidente da SBC, os doentes cardiovasculares têm mais risco de morte em razão da Covid-19. O coronavírus afeta o coração, provocando miocardites, síndromes coronarianas agudas e AVC.

“Na pandemia o atendimento às situações agudas, como infarto e AVC, e às situações crônicas, como diabetes, hipertensão e insuficiência cardíaca, ficou muito prejudicado. Então, temos aumento de morte pelas complicações da Covid e pela desassistência”, diz ele.

A cardiologista Glaucia Moraes de Oliveira, professora da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) afirma que o sistema de saúde hoje no Rio está extremamente saturado e muitas mortes ocorrem porque as pessoas não conseguem chegar ao hospital.

“Quando elas chegam ao hospital, a situação clínica está tão ruim que a nossa taxa de mortalidade hospitalar está muito alta. O sistema de saúde no Rio está cronicamente sobrecarregado, desde antes da pandemia.”

Segundo ela, muitos desses pacientes que estão morrendo em casa, ou numa UPA, à espera de vaga no hospital são os hipertensos, diabéticos, com doenças coronarianas crônicas que, desde o início da pandemia, não conseguiram ser assistidos.

“A gente precisa fortalecer a atenção primária, precisaríamos estar atendendo melhor os pacientes nas clínicas de saúde da família.”

Carlos Eduardo Rochitte, professor colaborador do departamento de cardiopneumologia da USP, chama a atenção para o aumento da procura de pacientes com dor torácica, resultante de inflamações no músculo cardíaco (miocardite) e na membrana que envolve o coração (periocardite), como sequelas da Covid-19.

“São casos de leve a moderados, de pessoas jovens. Essa alteração aparece semanas, e até meses depois do evento agudo [a infecção]."

Cardiologistas vão oferecer teleconsulta em Manaus

Para minimizar o colapso no atendimento dos hospitais públicos de Manaus (AM), cardiologistas voluntários vão atender pacientes cardíacos por meio de teleconsultas e teleorientações.

Chamado SOS Coração Amazonas, o projeto é da Conexa Saúde, em parceria com a SBC (Sociedade Brasileira de Cardiologia), que ofereceu sua plataforma de telemedicina para os atendimentos virtuais.

Manaus é a capital que apresentou maior aumento de mortes por infarto e AVC, além de alto índice de óbitos por doenças cardiovasculares em casa em 2020.

“O projeto não resolve a desassistência e falta de leitos no Amazonas, mas se conseguirmos orientar a população sobre as suas patologias e os medicamentos que devem tomar, as doses corretas, fazer uma triagem dos casos graves e encaminhar para serviços especializados e atender indivíduos que não procuram assistência por medo, já é um bom começo", diz José Francisco Kerr Saraiva, diretor de promoção de saúde cardiovascular da SBC/Funcor.

O cadastramento dos pacientes de doenças cardiovasculares amazonenses para o atendimento a distância será feito diretamente na plataforma de telecardiologia pela prefeitura de Manaus e pela direção do Hospital Universitário Francisca Mendes.

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