Descrição de chapéu Coronavírus

Fobia social faz isolamento parecer um alívio, mas escassez de interações pode agravar sintomas

Transtorno é caracterizado pelo medo excessivo de se expor e de ser julgado negativamente

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Lauro de Freitas (BA)

Nem todo mundo lamentou o fechamento dos bares, das praias e das salas de aula. Para algumas pessoas, a vida interditada pela pandemia, que completa um ano rodeada por máscaras, distanciamento e chamadas no Zoom, parecia oferecer, pela primeira vez, um alívio.

Pelo menos foi isso que Julia sentiu quando as primeiras medidas restritivas começaram a valer na cidade de São Paulo, em março de 2020. “Eu estava aliviada porque não ia ter que passar por aquele mar de emoções que era ir só até a faculdade. Ia poder ficar na minha casinha, quieta, assistindo aulas no computador”, lembra. A pedido, o seu sobrenome foi omitido.

A estudante de direito de 21 anos pouco frequentava os encontros do curso, mas o motivo passava longe de indisciplina ou falta de tempo. “Não aguentava a socialização, o simples fato de ver as pessoas. Estava naquele nível em que ser reconhecida no corredor ou ver alguém me dar um tchau, era demais para mim”, conta.

O problema não era novo. Desde criança, seus pais e médicos relacionam a sua dificuldade de criar vínculos sociais a uma timidez excessiva. Toda vez que tentava falar com alguém, sentia como se saísse do próprio corpo e apontasse o dedo para si mesma, rindo. Depois de anos de isolamento e bullying na escola, além do início de um quadro de depressão na adolescência, foi diagnosticada com fobia social, ou mais precisamente, transtorno de ansiedade social.

O distúrbio pode ser definido como o medo persistente de se expor e de ser julgado negativamente —e acomete cerca de 13% da população brasileira (em torno de 26 milhões de pessoas), de acordo com dados do Congresso Brasileiro de Psiquiatria.

Moradores em seus respectivos apartamentos, em São Paulo, durante a pandemia - Victor Moriyama - 19.mar.20/The New York Times

Marco Abud, psiquiatra e fundador do canal no Youtube Saúde da Mente, explica que a fonte da apreensão não está no outro, “mas na possibilidade de ser humilhada, ridicularizada, [de] que a sua performance seja motivo de chacota”.

E apesar de parecer, quem sofre com a fobia não despreza o contato com os outros. “Normalmente são pessoas que gostariam de poder socializar, o problema é que o medo da rejeição é muito forte”, diz Abud. “Há algo que me causa ameaça, mas ao mesmo tempo é importante para mim.”

Os sintomas costumam surgir na adolescência e, frequentemente, acompanham comorbidades, como depressão, abuso de substâncias e transtornos alimentares. Já as causas vão desde fatores genéticos a comportamentos de replicação de pais e familiares na infância.

Falar, comer, beber em público, interagir com estranhos, aglomerar —as atividades pelas quais tantos anseiam na pandemia são justamente os medos mais comuns aos fóbicos, embora também possam lembrar a timidez clássica. “A diferença está justamente na intensidade e na duração”, explica a psicóloga Nataly Martinelli.

Segundo ela, tanto na fobia social generalizada, em que a pessoa teme quase todas as situações, quanto nas manifestações mais restritas, há a tendência para a reclusão, pois “o cérebro acaba interpretando as situações como uma ameaça legítima [à integridade]. É lutar ou fugir”.

A crise do coronavírus, entretanto, trouxe uma nova nuance: pela primeira vez, o isolamento não apenas passaria a ser socialmente aceito, como também momentaneamente incentivado por autoridades de saúde, no esforço de contenção de uma doença.

De repente, o horizonte era o de uma vida mais fácil e confortável, livre das obrigações presenciais.

“A pandemia foi uma espécie de ‘salvamento’ para alguns. Já vi depoimentos de como [fóbicos] se sentem mais confortáveis com a máscara, porque ninguém poderia ver o rosto de ninguém”, conta Bárbara de Oliveira, 30, que tem ansiedade social e administra um grupo sobre o tema no Facebook, com mais de 8 mil membros.

O tradutor João Augusto, 30, concorda. “Dá a sensação de que estou mais protegido, menos exposto aos olhares alheios e isso aumenta a confiança.” E pontua: “O isolamento já era algo que o fóbico social vivenciava ou gostaria de desfrutar”.

Apesar do receio de contrair a Covid-19, Lili Marinho, 42, afirma que o período tem sido tudo de bom. "Se fosse o contrário, ou seja, se tivéssemos que ficar na rua o dia inteiro, aí sim eu iria achar muito ruim." Há 6 anos, ela escreve o blog "Sou Fóbica Social", onde pôde alcançar muitas pessoas que sofriam com o distúrbio.

Os encontros deram luz a um grupo no WhatsApp, que hoje tem em torno de 100 participantes. Lili (o nome é fictício) diz que, por lá, a satisfação com o momento não é unânime: "Algumas pessoas do grupo dizem que se sentem muito mais isoladas e, portanto, mais deprimidas."

O psicólogo Pedro Gouvêa, idealizador da página Ansiedade Social em Foco, explica que no "mundo remoto" os riscos de julgamento e rejeição são muito menores, já que a exposição cai e a evitação mais fácil. Como efeito, os fóbicos podem perder ainda mais as habilidades sociais dada à escassez de relações. "A combinação desses fatores, além da ausência de tratamento, pode ocasionar uma piora do quadro a longo prazo", diz.

"Não ter nenhuma interação é ruim. Acaba gerando mais ansiedade do que você já tinha. Você está há mais tempo longe de pessoas, há mais tempo dentro de casa”, afirma Bruna Moraes, 33.

Diagnosticada com o transtorno aos 19 anos, ela diz que sente falta do equilíbrio da rotina –em que podia ir ao escritório e fazer exercícios físicos regularmente.

Para Julia, a retração nas habilidades sociais foi mais intensa. “Descobri que não conseguia mais fazer um telefonema para os meus familiares próximos, como a minha avó, a minha mãe e a minha prima –pessoas com quem tinha intimidade. Só de pensar na ideia, já começava a chorar de medo”.

Entre os especialistas, o conselho é unânime, mas pode não agradar: buscar ajuda especializada, resistir à falsa sensação de segurança da quarentena e tentar manter uma vida social minimante ativa, mesmo que de forma virtual e gradativa.

Buscar hobbies prazerosos, cultivar uma rotina, aceitar os pensamentos e sentimentos sem julgá-los e desenvolver a autocompaixão( no lugar da autocrítica) são outras sugestões que podem ajudar a amenizar a ansiedade.

E quando a pandemia acabar? Segundo Martinelli, o futuro deve ser encarado da mesma forma que o presente, como uma "oportunidade para trabalhar as habilidades sociais, enquanto a maior parte da população está reaprendendo as suas".

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