Descrição de chapéu Coronavírus

'Minha mãe foi ao hospital para morrer', diz filha de idosa com suspeita de Covid; leia relatos

Gestão da pandemia tem levado médicos a até retardar liberação de pacientes por falta de leitos de UTI

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Gonçalves (MG)

O reflexo da pandemia de Covid vai muito além da lotação de hospitais. Se do lado de fora das unidades, a batalha é conseguir um leito, dentro delas, a luta é sobreviver.

Quando o colapso atinge um hospital, todos os procedimentos que envolvem o atendimento de um paciente são fortemente comprometidos. Na pandemia, as unidades vem sofrendo com a falta de leitos de UTI (Unidades de Terapia Intensiva), profissionais e insumos para manter os pacientes sob tratamento.

Augusta Silva dos Santos, 93
Augusta Silva dos Santos, 93 - Arquivo Pessoal

As trajetórias das internações de três pacientes acompanhados pela Folha resumem o cenário. Uma delas morreu, outro se recuperou, e a terceira pessoa ainda segue internada em estado grave.

A aposentada Augusta Silva dos Santos, 93, redobrou os cuidados em casa para manter-se longe do coronavírus ao longo de 2020. E conseguiu.

Augusta morava em casa com um dos filhos na pequena Guararapes, cidade de 33 mil habitantes e distante a 546 km da capital paulista.

Na noite do dia 28 de fevereiro, caiu na sala de casa e fraturou o fêmur. Levada para uma unidade pública de saúde da cidade, o caso foi regulado para a Santa Casa de Misericórdia de Araçatuba (SP), polo da região.

Augusta foi internada na enfermaria do hospital, cuja entrada dá de cara para um corredor onde passam muitas pessoas com suspeita ou confirmação de Covid-19.

A filha de Augusta, a psicóloga Marilza Arcanjo dos Santos Rodrigues, 57, lembra das promessas da equipe de saúdesobre a cirurgia da mãe.

“Minha mãe ficou de jejum à espera da ida dela para o centro cirúrgico, mas acabaram escolhendo uma outra paciente, de 60 anos, que estava na mesma enfermaria”, diz Rodrigues.

“Eu senti que eles fizeram uma escolha de Sofia: deram a chance de atendimento à paciente mais nova", afirma a psicóloga. Os dias foram passando, e Augusta, que precisava apenas fazer uma cirurgia no fêmur, não quis mais comer e acabou apresentando sintomas de uma pneumonia.

“E era sempre a mesma desculpa: não tem anestésico para operar a sua mãe”, diz. Depois de muita pressão familiar, Augusta deixou a enfermaria e seguiu para um quarto.

Já era tarde. Uma tomografia detectou que os pulmões dela estavam comprometidos, um sinal claro da presença do coronavírus. Augusta havia tomado a primeira dose da vacina Coronavac, produzida pelo laboratório da chinesa Sinovac em parceria com o Instituto Butantan. A imunização seria completada no dia 1º deste mês, mas a aposentada já estava internada.

O quadro de saúde piorou, e Augusta morreu na noite da última quarta-feira (10), dia em que o país registrou 2.349 mortes por Covid-19, a maior marca da pandemia até aqui.

Augusta Silva dos Santos, 93
Augusta Silva dos Santos, 93 - Arquivo Pessoal

A declaração que atesta o óbito relata que a aposentada morreu por insuficiência respiratória com suspeita de Covid-19. “A sensação que dá é que a minha mãe foi ao hospital para morrer”, lamenta a filha.

A Santa Casa de Misericórdia de Araçatuba se manifestou em duas notas. Na primeira, tratava o caso como se Augusta ainda estivesse viva, apesar de ter sido informada pela Folha que não.

“Ela está sendo submetida a terapias para correção dos níveis e, ao final desta, será reavaliada, quando, então os médicos terão informações científicas sobre o quadro e decidirão pela realização ou não do procedimento cirúrgico”, diz trecho do primeiro comunicado.

Na segunda manifestação, a Santa Casa de Araçatuba informou que “a instabilidade do quadro clínico da paciente inviabilizou a realização da cirurgia”. “A equipe médica que a atendeu ministrou terapias específicas para reverter o quadro e tornar a paciente clinicamente apta para ser operada.”

A unidade de Araçatuba negou a falta de anestésico e disse que o medicamento tem sido direcionado “para cirurgias de urgência e emergência e em pacientes que necessitam de ventilação mecânica”.

Caso de Augusta, que precisava passar pelo procedimento. A idosa só tinha idade. Aos 93, ainda era muito ativa e esbanjava sorriso no rosto. Deixou seis filhos, 14 netos e oito bisnetos.

Médico adia alta de paciente temendo falta de leito

Outro desfecho clínico teve Valdenir Ferer, 57. Morador da capital paulista, o técnico mecânico gráfico contraiu a Covid no repique de casos da doença.

Com a piora do quadro de saúde, Ferer precisou se internar no dia 22 de fevereiro ao ter 52% de seus pulmões comprometidos pelo coronavírus.

A unidade escolhida foi o hospital Portinari, na Vila Santa Edwiges (zona oeste de São Paulo). Assim como os demais hospitais, o Portinari também tem sido muito demandado na pandemia. De sua casa, conseguiu falar poucas palavras com a Folha porque ainda se recupera de crises ligadas à falta de ar.

As poucas palavras do paciente resumem o desespero da equipe de saúde que o atendeu. “Meu médico adiou a minha saída do hospital”, disse. “Ele ficou com medo de eu piorar, e o hospital não ter um novo leito caso eu precisasse ser novamente internado”.

Ferer ficou, ao todo, nove dias internado. Eny Tripodo, a gerente do Portinari, confirma a prática da postergação da alta médica. “Nós só estamos liberando os pacientes que atingem 100% de certeza de melhora”, afirma.

“Fazemos uma espécie de desmame de oxigênio no paciente para saber se ele consegue respirar sozinho e aos poucos. Só aí que ele vai para casa”, completa Tripodo.

Hospitais cedem remédio para evitar intubação a seco

Em Goiânia, Clara batalha pela vida. A advogada, cujo nome foi trocado a pedido de uma equipe médica, está internada em estado grave num hospital da capital goiana por causa da Covid-19.

Clara passou por um sufoco há alguns dias devido à falta de insumos hospitalares, problema que atinge várias partes do Brasil nesta pandemia. Ela foi amarrada ao leito para ser intubada sem o uso de anestésico, que está em falta.

A violência contra a paciente só não aconteceu porque houve um esforço conjunto entre a direção de quatro hospitais para ceder pequenas quantidades do medicamento à paciente.

A farmacêutica Ana Valéria Ribeiro Miranda, 45, conta que o relaxante muscular “foi entregue nas mãos da chefe da UTI para a paciente ser intubada com dignidade”.

Miranda é assessora técnica da Ahpaceg (entidade que representa 26 hospitais particulares do estado de Goiás) e administra as compras de remédios para as unidades.

Ela diz que tem faltado de Buscopan Composto a cateter de alto fluxo, equipamento que amplia a oxigenação do paciente e retarda a intubação.

Sem os medicamentos, “a gente tem optado por voltar a fechar as portas de nossos prontos-socorros por falta de estrutura nos atendimentos”, afirma.

A secretaria de Saúde de Goiás disse que Clara está internada num hospital particular da capital , e que na rede pública não há registros de falta de medicamentos para intubação.

A falta de insumos é acompanhada de perto pelo Conselho Federal de Medicina, que listou 4.065 queixas de médicos sobre o problema pelo país.

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