Motorista procura hospital 4 vezes e é mandado para casa com remédio sem eficácia contra Covid

João Pedro Lima espera vaga de UTI após não ter conseguido tratamento mesmo apresentando sintomas

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São Paulo

Na primeira vez que o motorista João Pedro de Oliveira Lima, 40, foi ao Hospital do Mandaqui, ele estava munido de um teste positivo de Covid e queixava-se de falta de ar, muita tosse e dores no corpo. Apesar disso, saiu de lá com uma receita do antibiótico azitromicina, que não tem ação comprovada contra a doença viral.

Lima, que trabalha em um açougue fazendo entregas, tinha feito o teste em uma farmácia, depois de descobrir que a cunhada, que estava morando com ele e a esposa em uma casa na Serra da Cantareira, na zona norte, tinha pegado covid.

Além da azitromicina, os médicos do Mandaqui receitaram o analgésico paracetamol e o antialérgico loratadina, normalmente usado para rinite alérgica. Instruíram Lima a ir para casa e a voltar ao hospital depois de tomar o antibiótico durante cinco dias.

O motorista continuou se sentindo muito mal e, depois de três dias, voltou ao hospital. Foi informado de que deveria ficar em casa, tomar o antibiótico até o fim e esperar melhorar.

Não melhorou. Puxava o ar, mas parecia que não vinha nada; tossia muito e estava até com uma moleza nas pernas.

Lima ainda voltou ao hospital duas vezes.

Na última, em 14 de março, a esposa de Lima, a manicure Edinelia, conta que ele estava com saturação de 92%. A saturação considerada normal fica entre 95% e 100%. Abaixo de 90%, é considerada uma "emergência clínica" pela Organização Mundial de Saúde.

Segundo Edinelia, Lima recebeu a seguinte orientação no hospital: “Vai para casa, porque precisamos dar preferência para pacientes que estão em estado mais grave; se piorar, volta para o hospital.” Era 14 de março.

Em casa, Lima continuou piorando, mas não quis ir de novo ao Mandaqui e dar com a cara na porta. Foi à Unidade Básica de Saúde do Jardim Alfredo, no Jardim Ângela, com sua irmã, Marilene Oliveira Lima, 47, que é diarista e mora no Capão Redondo.

A moradora do Capão Redondo Marilene de Oliveira Lima, 47, que está com o irmão, João Pedro de Oliveira Lima, 40, internado em uma UPA esperando vaga em UTI, e os dois filhos também com covid-19.
A moradora do Capão Redondo Marilene de Oliveira Lima, 47, que está com o irmão, João Pedro de Oliveira Lima, 40, internado em uma UPA esperando vaga em UTI, e os dois filhos também com covid-19. - Zanone Fraissat/Folhapress

Lá, segundo Marilene, foram muito bem atendidos por uma médica, que colocou uma cânula nasal de oxigênio em Lima e providenciou uma ambulância para levá-lo até a Unidade de Pronto Atendimento (UPA) do Campo Limpo.

Ao dar entrada na UPA, enfermeiros colocaram uma máscara de oxigênio em Lima e ele foi virado de bruços, na manobra conhecida como pronagem, que ajuda os pacientes a respirar melhor. Foi informado de que iria aguardar uma vaga em alguma UTI.

No dia seguinte, na quarta-feira (17), a família comemorou o boletim da UPA: Lima estava melhorando, estava consciente, e achavam que, logo, logo, poderia ficar sem a máscara de oxigênio.

Edinelia mandou um recado para o marido: “Cada dia estamos com a oração mais forte para você voltar logo”. Uma enfermeira disse que ia tentar fazer uma chamada de vídeo para ele conversar com a esposa.

“Vamos orar e agradecer, ele melhorou, graças a Deus”, disse Marilene, em mensagem de áudio para a família.

No dia seguinte, sexta-feira (19), más notícias. “Ligaram da UPA dizendo que o caso dele piorou de ontem para hoje, saturação entre 87% e 92% e que os exames não mostraram melhora”, conta Edinelia. “Estamos aqui todos de cabeça quente, a saturação dele está oscilando, se ficar assim até a noite vão intubar ele, misericórdia”, disse Marilene.

Na noite de sexta, Lima fez uma ligação de vídeo para Edinélia. Através da máscara, disse que estava com desconforto, dificuldade de respirar, e que estavam tentando arrumar uma vaga para ele na UTI do Hospital de Parelheiros. Ele disse que não tinha tomado banho desde o dia em que chegou na UPA (na terça-feira) e estava de fralda. Aí teve que desligar, porque a saturação caiu.

Segundo a Secretaria Municipal de Saúde, só na quinta-feira (18), a UPA do Campo Limpo atendeu 119 casos de quadro respiratório e outros 119 casos suspeitos de Covid-19. Além disso, tratou 30 casos confirmados de Covid-19, teve três mortes confirmadas com a doença e quatro suspeitas. Na unidade também havia 39 leitos ocupados para observação e 93 em observação para Covid-19.

A família de Lima está desesperada. O nome dele está no sistema Cross, que determina a transferência dos pacientes para UTIs em hospitais. Mas eles sabem que está tudo lotado.

Marilene reza pelo irmão e também pelos filhos. Rafael, de 26, e Ana Vitória, de 16, foram diagnosticados com covid. Rafael foi à Unidade Básica de Saúde do Jardim Coimbra, na estrada do M`Boi Mirim, zona sul de São Paulo, e saiu com uma receita de azitromicina.

O calvário de Lima, Edinelia e Marilene é um retrato de como o colapso do sistema de saúde afeta a periferia.

A Folha teve acesso às receitas prescritas aos pacientes e conversou com três médicos sobre o uso de azitromicina contra covid-19. Segundo Esper Kallás, professor titular do departamento de moléstias infecciosas e parasitárias da Faculdade de Medicina da USP, durante algum tempo, os médicos (ele inclusive) usaram a azitromicina porque havia indícios de que o medicamento poderia ter efeitos benéficos.

Mas, no ano passado, foram publicados estudos demonstrando que a droga não tem nenhuma eficácia, e pode aumentar o risco de infartos em pessoas com doenças coronárias existentes. “O uso da azitromicina para o covid não tem nenhum respaldo científico”, diz.

Para o médico intensivista Jaques Sztajnbok, supervisor da UTI do hospital Emílio Ribas, “as pessoas querem prescrever alguma coisa, porque querem acreditar em alguma coisa”. Mas inúmeros estudos indicam que não há efeitos, diz ele, que está trabalhando com a UTI completamente lotada e adaptando leitos de enfermaria.

Arnaldo Lichtenstein, clínico geral do Hospital das Clínicas, concorda com os outros médicos. E aponta para a natureza traiçoeira da doença. “Pode piorar de uma hora para outra.”

O estado de São Paulo tinha na sexta-feira (19) um número recorde de pacientes internados com covid-19 - 27.527. Desses, 11.738 estavam em UTIs, e 15.789 em enfermaria.

As taxas de ocupação dos leitos de UTI eram de 91,4% no estado e de 91,6% na Grande São Paulo.

Procurada, a Secretaria Municipal de Saúde, responsável pelas UBSs e UPAs, informou que “a azitromicina é um antibiótico ministrado em várias infecções bacterianas e sua utilização ocorre mediante avaliação médica.”

A Secretaria Estadual de Saúde, responsável pelo Hospital do Mandaqui, informou que Lima esteve quatro vezes hospital e “em todas foi devidamente avaliado e orientado, não sendo recomendada internação em nenhuma das ocasiões após cuidadosa avaliação e exames, sempre com recomendação de voltar ao hospital em qualquer sinal de atenção.”

A assessoria afirmou que, no primeiro dia, “foi identificada inflamação na garganta” e por isso foi receitado antibiótico. A assessoria não comentou o fato de ele ter exame positivo para covid, nem de a família dizer que ele nunca teve dor de garganta.

Ainda segundo a assessoria, no dia 13, concluído o uso do antibiótico, Lima retornou ao hospital relatando fadiga, falta de apetite e de ar. “A saturação era de 92% e foram pedidos exames laboratoriais e tomografia de tórax, não sendo recomendada a internação mediante avaliação especializada”.

A secretaria não comentou a orientação relatada pela família, de que ele deveria ir para casa porque estavam dando preferência para internar casos mais graves. Ainda segundo a assessoria, no momento, todos os leitos de UTI do Mandaqui estão ocupados.

Lima seguia na UPA do Campo Limpo, esperando uma vaga de UTI.

No sábado à noite, após quatro dias à espera de um leito, joão foi transferido para a UTI do Hospital Municipal de Parelheiros.

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