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Remoção de dejetos em banheiro para sem-teto cria 'nuvem de odor' em rua histórica de SP

Espaço com duchas e lavanderia para população de rua tem incomodado moradores da rua do Boticário

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Gonçalves (MG)

Renée Zampronio da Silveira, 29, perdeu a sensação boa que tinha em estar em casa faz três semanas. O único cômodo que ainda tem status de refúgio é a cozinha, onde ela se tranca para comer e lecionar aulas de inglês a distância.

O resto do apartamento, diz ela, foi invadido “por uma nuvem maligna de coliformes fecais que cheira a morte”. Renée vive com o marido no primeiro andar do edifício Laura Cristina, na estreita e histórica rua do Boticário, na região central da capital paulista.

De ocupação mista, o edifício de 11 andares distribuídos por 36 apartamentos abriga no térreo o internacionalmente conhecido Leiteria Ita, restaurante que serviu por quase 70 anos no seu balcão em W um pê-efe muito disputado.

Estrutura do banheiro público, entre a avenida Rio Branco e a rua do Boticário, no centro de SP
Estrutura do banheiro público, entre a avenida Rio Branco e a rua do Boticário, no centro de SP - Arquivo Pessoal

Mas toda atenção de Renée, no momento, está diante de sua janela: um grande banheiro público. E é de lá que o odor vem empesteando a rua do Boticário, causando medo por riscos de contaminação pelo coronavírus Sars-Cov-2 e rixas entre sem-teto.

“Meu quarto também virou um Big Brother porque quem sobe uma rampa da instalação consegue ver tudo aqui. Me sinto invadida”, reclama a professora de inglês.

A estrutura é um complexo de serviços batizada de “Vidas no Centro”. Conta com banheiros, duchas e uma lavanderia que podem ser acessadas pela população de rua em todos os dias da semana, das 7h às 19h.

O espaço busca reparar uma reivindicação histórica dos sem-teto que viram banheiros públicos serem fechados na cidade em diferentes gestões. Sem os espaços, os canteiros, as calçadas e as sarjetas da metrópole passaram a ser usados como privada por essa população tão relegada das políticas públicas.

Como a principal medida para evitar a infecção por Covid-19 é manter a higiene pessoal em dia, a gestão de Bruno Covas (PSDB) mantém, além do complexo da rua do Boticário, mais quatro unidades emergenciais do “Vidas no Centro”.

Elas estão nas praças de Sé e República; na estação Júlio Prestes; e no Parque Dom Pedro –todas no centro, a região com maior concentração de sem-teto da cidade, que atingiu pouco mais de 24 mil pessoas vivendo nas ruas, segundo o censo da prefeitura divulgado um ano antes da pandemia.

Os moradores do Laura Cristina afirmam não ser contrários ao banheiro público. O problema, dizem, está na operacionalização da estrutura que tornou a rua insalubre.

De abril de 2020 até o início deste mês, a estrutura permaneceu no largo do Paissandu, a poucos metros da rua do Boticário. Na noite do dia 5, uma sexta-feira, passou a ser montada diante do Laura Cristina, e a inauguração se deu na semana seguinte.

Com quase um ano de funcionamento, o espaço contabiliza quase 200 mil banhos e outros 4.000 usos da lavanderia, segundo a secretaria de Assistência Social da prefeitura.

Os sem-teto adentram o espaço pela avenida Rio Branco. A rua do Boticário serve como estacionamento de caminhões que se revezam várias vezes ao dia para coletar os dejetos depositados em seis grandes caixas de plástico interconectadas.

De forma muito improvisada, equipes de limpeza que prestam o serviço à prefeitura abrem as tampas das caixas cheias com os dejetos e depositam nelas mangueiras de sucção conectadas aos caminhões.

Durante todo o processo, que dura de 30 a 45 minutos para cada caminhão, a tampa dos depósitos fica aberta, o que espalha o odor forte pela região.

O barulho da chegada dos caminhões tem deixado a doutoranda em estudos da religião, Lauana Flor, 41, aflita. “Por que eu sei que daquele momento pra frente não terei mais ar bom circulando dentro da minha casa”, diz.

De seu apartamento, no segundo andar do prédio, Lauana já viu a equipe de limpeza sem máscara manuseando os reservatórios e deixando o compartimento dos próprios caminhões bem escancarado durante a retirada de urina e fezes. “O que espalha mais ainda o odor”, diz Flor.

A moradora diz não entender a falta de planejamento na coleta dos dejetos que, segundo ela, poderia ser a vácuo. “Eles tinham que ter instalado uma válvula nas caixas para o processo todo acontecer sem espalhar esse cheiro horrível para nossas casas”, afirma Flor.

A síndica do Laura Cristina, a aposentada Ruth Guimarães Oliveira, 77, também diz que além de a rua do Boticário não suportar o vaivém de caminhões, por ser muito pequena e estreita, é grande a preocupação pelo risco sanitário. “Sabemos que o coronavírus sobrevive no esgoto”, afirma.

Oliveira encaminhou ofícios à prefeitura sobre os problemas causados pelo banheiro público na região, mas diz não ter obtido resposta até o momento.

O complexo foi instalado de forma provisória num terreno da prefeitura onde funcionou por muito tempo um estacionamento. A mesma área também daria lugar ao circo-escola Piolin, um projeto que homenageava o palhaço que manteve um circo no largo do Paissandu.

Orçada em 2012 por volta de R$ 35 milhões, a iniciativa nunca saiu do papel porque para construí-la seria necessário demolir, entre outras construções, um prédio onde está instalada uma ocupação de sem-teto.

Hoje, os moradores desta ocupação também estão incomodados com o banheiro público na vizinhança. Eliofábia Rodrigues da Silva, 36, uma das moradoras do local, afirma que já fez um barraco quando viu fezes e muita urina na entrada da ocupação.

“Se cagarem aqui novamente, eu vou recolher e jogar lá”, diz Silva. “Aqui vivem 63 famílias numa ocupação limpa e organizada”.

Remoção de dejetos é feita com tampa aberta em banheiro da prefeitura na rua do Boticário
Remoção de dejetos é feita com tampa aberta em banheiro da prefeitura na rua do Boticário - Arquivo Pessoal

OUTRO LADO

A Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social informou que a unidade do “Vidas no Centro” deixou o largo do Paissandu para evitar aglomerações e não atrapalhar a via pública.

Questionada sobre a forma como os dejetos são recolhidos, a secretaria disse que a prestadora de serviço passou a usar um sistema hidráulico que remove os dejetos sem a necessidade de abrir a tampa, assim evitando o odor.

O comunicado da pasta é da última sexta-feira (19) e contraria vídeos encaminhados pelos moradores à Folha que mostram que a retirada dos dejetos seguiu sendo feita levantando as tampas das caixas até esta terça-feira (23).

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