Descrição de chapéu Agência Fapesp Coronavírus

Cientistas descrevem possível mecanismo que permite à variante sul-africana do coronavírus escapar do sistema imune

Mutação na região que se liga aos anticorpos está associada ao bloqueio da ação dos mesmos

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André Julião
Agência Fapesp

Um grupo liderado por pesquisadores da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) acredita ter encontrado o mecanismo que possibilita à variante sul-africana do Sars-CoV-2 (também conhecida como B.1.351) escapar dos anticorpos gerados em infecções anteriores pela cepa ancestral do vírus.

A descoberta, que ainda precisa ser confirmada por novos experimentos, pode abrir caminho para o desenvolvimento de vacinas eficazes tanto contra a variante que emergiu na África do Sul, já presente no Brasil, quanto a originária de Manaus (P.1), bem como as suas predecessoras.

O estudo, publicado como pré-print na plataforma medRxiv, está em processo de revisão por pares.

Por meio de simulações computacionais, o grupo estudou a proteína chave do Sars-CoV-2, conhecida como spike. Ela é a responsável por se ligar ao receptor existente nas células humanas (a proteína ECA2) e viabilizar a infecção.

Imagem de microscopia mostra à esquerda o Sars-Cov-2, o novo coronavírus, atacando a membrana de uma célula.
Imagem de microscopia mostra à esquerda o Sars-Cov-2, o novo coronavírus, atacando a membrana de uma célula. - Foto: IOC/ Fiocruz

Os resultados sugerem que uma das mutações existentes na ponta da spike da variante sul-africana —caracterizada pela troca do aminoácido lisina por asparagina— pode resultar na ocorrência de um fenômeno bioquímico conhecido como glicosilação, que muda a feição da proteína viral e impede a ligação dos anticorpos. Já na variante P.1, a lisina é substituída por uma treonina, que não sofre glicosilação.

“No desenvolvimento de uma vacina, hoje, é preciso escolher o que será mais eficaz contra o vírus, incluindo as variantes. No caso do Sars-CoV-2, das três mutações que ocorrem na P.1 e na B.1.351, duas são exatamente iguais. Portanto, é possível que uma vacina que tenha como foco a variante sul-africana seja eficaz também contra a P.1 e contra o vírus ancestral. Mas vacinas contra essas duas últimas provavelmente serão menos eficazes contra a variante sul-africana”, explica Keity Souza Santos, professora da FMUSP e autora correspondente do artigo.

O trabalho é resultado de um projeto apoiado pela Fapesp e coordenado por Jorge Kalil, professor da FMUSP e coordenador do Laboratório de Imunologia do Instituto do Coração (InCor), que também assina o artigo.

O grupo liderado por Kalil trabalha no desenvolvimento de uma vacina contra a Covid-19. O projeto é apoiado pela Fundação e pela Financiadora de Estudos e Projetos (Finep).

“Trabalhos anteriores de outros grupos não conseguiram encontrar a região específica em que os anticorpos humanos se ligam à RBD [domínio de ligação ao receptor, na sigla em inglês], como é chamada a ponta da proteína spike que encaixa nas células humanas. Até então eram feitas inferências. Utilizamos uma técnica que permitiu localizar exatamente uma região predominantemente reconhecida, que chamamos de imunodominante. É a mesma em que ocorre uma das mutações das variantes de Manaus e da África do Sul”, conta Santos.

Após identificar a região na primeira cepa do vírus, o grupo composto por pesquisadores da USP, Universidade Estadual Paulista (Unesp), Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e Universidade de Salzburg, na Áustria, submeteu a sequência de aminoácidos ao soro sanguíneo de 71 pacientes recuperados de Covid-19 no Hospital das Clínicas da FMUSP no começo da pandemia no Brasil. Em 68% das amostras, os anticorpos presentes no soro foram capazes de se ligar ao peptídeo chamado de P44, presente na RBD da proteína spike.

Para entender como ocorre a ligação dos anticorpos nessa região encontrada pelos pesquisadores, foram feitas simulações computacionais. As informações da RBD das duas variantes e do vírus ancestral foram cruzadas com a do anticorpo monoclonal REGN10933, conhecido por se ligar à região imunodominante e, atualmente, em testes clínicos para tratamento da Covid-19. O computador faz o que se chama de predição de neutralização, ou seja, estima a capacidade dos anticorpos de neutralizar o vírus.

Nas simulações, a predição de neutralização foi completa contra o vírus ancestral e um pouco diminuída para a variante P.1 Na variante sul-africana, contudo, houve uma queda drástica na predição de neutralização, confirmando o que havia apontado um artigo publicado por cientistas norte-americanos pouco antes da submissão do artigo dos brasileiros.

Para o grupo liderado pela USP, a ligação não ocorre na B.1.351 porque uma das suas mutações é justamente a troca do aminoácido lisina por asparagina, que sofre o processo de glicosilação. Essa alteração seria, provavelmente, a responsável pela baixa estimativa de neutralização da variante sul-africana pelos anticorpos gerados a partir da infecção pela cepa original do Sars-CoV-2. O fenômeno da glicosilação já foi observado no vírus influenza, da gripe, mas ainda não havia sido apontado no caso do Sars-CoV-2.

“Nas variantes P.1 e B.1.351, a mutação da RBD consiste em apenas três aminoácidos diferentes em relação à RBD do vírus ancestral. A mudança, contudo, parece ser suficiente para tornar as variantes de Manaus e da África do Sul mais transmissíveis. Uma vacina que gere anticorpos que ataquem as duas mutações que ambas as variantes têm em comum, mais o aminoácido glicosilado da B.1.351, provavelmente será mais eficaz”, diz Santos.

Para confirmar a hipótese, o grupo planeja agora experimentos in vitro utilizando amostras do peptídeo P44 com a glicosilação na asparagina. O objetivo é confirmar se os anticorpos realmente não se ligam a esse aminoácido quando ele é glicosilado. Além disso, os pesquisadores obtiveram soro de pacientes recuperados da P.1 e pretendem confirmar se os anticorpos desses pacientes se ligam mesmo ao peptídeo P44.

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